sábado, 30 de agosto de 2014

O feminismo como produtor de conhecimento


Por Vitória Fox
Desde a segunda metade do século XX as ciências humanas têm contado com inúmeras pesquisas que visam analisar a participação das mulheres na sociedade e a relação entre os gêneros. Na historiografia isso significou maior abertura dos objetos e temas de pesquisa, visando resgatar a memória de grupos marginalizados, entre eles a história das mulheres, que por muito tempo estiveram excluídas das narrativas tradicionais, em que a “história oficial” privilegiava, sobretudo, o “sujeito universal” masculino, branco, heterossexual e cisgênero.
Para compreender melhor essa abertura é necessário mencionar o impacto da história cultural e dos próprios movimentos feministas na produção intelectual. No decorrer do século XX as antigas formas de fazer história começaram a ser questionadas. Segundo o historiador Jacques Revel, os grandes modelos teóricos e suas propostas de fomentar uma inteligência global do mundo sócio-histórico[1] passaram a não corresponder aos anseios dxs historiadorxs. É necessário lembrar que vários desses modelos também carregavam em seu bojo a promessa de progresso e melhorias na vida humana.  Tais características geraram desconfiança em várixs pesquisadorxs, que não só notaram os espaços ainda vazios no conhecimento acumulado, como também passaram a ter um olhar mais crítico à produção desse conhecimento. A nova história cultural abriu um leque de possibilidades, pois se antes o que era considerado “cultura” era a produção artística, literária e musical de certas elites, agora a cultura popular passou a ter lugar na historiografia, resgatando a memória de indivíduos excluídos e marginalizados. Entretanto, essa ampliação de horizontes não se ateve, apenas, à história cultural, chegando a influenciar inúmeros trabalhos em história social, política e econômica. 
Na inclusão de grupos humanos que não correspondiam ao “sujeito universal”, os marxistas certamente foram os pioneiros em incluí-los nas narrativas históricas. Podemos citar os trabalhos de Walter Benjamin e Theodor Adorno – assim como outros nomes da Escola de Frankfurt -, e E. P. Thompson, que colocaram a classe operária no centro de sua produção. Contudo, essas narrativas privilegiavam, sobretudo, o recorte de classe, excluindo outras categorias como raça, gênero e orientação sexual. O marxismo também passou a ser visto com desconfiança, já que também era um modelo teórico cheio de promessas que nem sempre correspondiam aos horizontes de expectativas de seus críticxs – contrariando o senso comum que diz que nas ciências humanas o marxismo é dominante.
Apesar das grandes contribuições que os teóricos marxistas do século XX fizeram aos movimentos sociais, as feministas nem sempre se sentiram contempladas por eles. Além das tensões no interior dos movimentos de esquerda – que como bem sabemos também reproduzem machismo, homofobia, transfobia e racismo -, havia também um problema de ordem prática e ideológica: acreditando que o patriarcado era fruto do capitalismo, era recorrente a ideia de que quando o proletariado derrubasse a burguesia, todas as discriminações de gênero deixariam de existir. Um pressuposto difícil de acreditar.
Com isso, as mulheres reconheceram a necessidade de produzir seu próprio conhecimento. Com a Segunda Onda nos anos 1960-70, o feminismo não pleiteou um lugar para si apenas nas ruas, mas também nas universidades, conquistando um espaço nas ciências humanas.
Desde então muita coisa aconteceu. Se antes a área era chamada de “estudos da mulher”, a categoria gênero passou a ser adotada pelo seu aspecto relacional[2] e, mais recentemente, os termos “mulheres” e “estudos feministas” são utilizados para dar visibilidade política ao gênero feminino. O feminismo intersecional também fez importantes colaborações, incluindo as mulheres lésbicas, bissexuais, negras, indígenas e trans* nessa produção. Conscientizando que existem diferenças dentro da diferença e que as mulheres não fazem parte de uma categoria monolítica.
Atualmente no Brasil existem diversos núcleos, grupos de estudos e revistas acadêmicas dedicadas aos estudos feministas e de gênero. Também testemunhamos a realização de simpósios, congressos e encontros de pesquisadorxs da área, como o Fazendo Gênero, realizado em 2013 em Florianópolis, e o Colóquio de estudos feministas e de gênero, realizado em Brasília em 2014. 
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II Colóquio de estudos feministas e de gênero.
Com isso, proponho axs leitorxs de nossa página que conheçam algumas revistas dedicadas ao tema. Além de apresentar os resultados de diversas pesquisas, também contribuem para o debate e formação intelectual nesse campo de estudos.
Cadernos Pagu – UNICAMP: “Criado em 1993, Cadernos Pagu, um dos principais periódicos brasileiros centrados na problemática de gênero, divulga reflexões teórico-metodológicas, resultados de pesquisa, documentos e resenhas, abordados a partir de diferentes perspectivas teóricas. A produção sobre os principais temas contemplados pela publicação – trabalho, educação, violência, sexualidade, raça, família, literatura, teorias feministas e teorias de gênero – tem oferecido significativa contribuição para as discussões no âmbito acadêmico e fundamentais subsídios para a atuação de organizações não governamentais e governamentais, incluindo a formulação de políticas públicas.” Acesse: http://www.pagu.unicamp.br/node/39
Revista Estudos Feministas – UFSC: “A Revista Estudos Feministas é um periódico indexado, interdisciplinar, de circulação nacional e internacional, cuja missão é publicar artigos, ensaios e resenhas que apresentem reflexões teóricas consistentes e inovadoras, com bibliografia atualizada, ampliando as fronteiras dos debates acadêmicos no campo dos estudos feministas e de gênero e instrumentando as práticas dos movimentos de mulheres. O exemplar número 0 da Revista Estudos Feministas foi publicado em 1992. Desde então a REF tornou-se uma referência obrigatória para todas(os) que trabalham no campo dos estudos de gênero e no feminismo.” Acesse: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref
Revista Ártemis – UFPB: “Esse periódico tem como missão a divulgação da produção científica no campo dos estudos de gênero, feminismos e sexualidades, dentro de uma perspectiva interdisciplinar, aborda fenômenos socioculturais a partir de análises históricas, literárias, culturais, psicológicas, etc. Os objetivos são: contribuir para a construção de novas abordagens teóricas e metodológicas de investigação e reflexão; e, difundir artigos nacionais e internacionais, pesquisas originais, resenhas e traduções. A Revista Ártemis é um periódico semestral, interdisciplinar, vinculada aos Programas de Pós Graduação em Sociologia e Programa de Pós Graduação em Letras da UFPB, dos quais recebe financiamento para editoração. Em 2011, a revista foi contemplada pelo edital do IPEA, PROESP Nº 001/2011 APOIO À PUBLICAÇÃO DE PERIÓDICOS BRASILEIROS EM CIÊNCIAS HUMANAS, um recurso extra que possibilitou a produção da versão impressa do periódico. A revista é qualificada em 12 áreas do conhecimento (Qualis B2 - SERVIÇO SOCIAL e B2- Antropologia e B3-na Interdisciplinar).” Acesse: http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis
Revista Labrys – Brasil, França: “Labrys, études féministes/estudos feministas é uma revista multdisciplinar, internacional, multilingue, gratuita, on line desde 2002. Nosso objetivo é ainda o mesmo: o de engendrar o debate, de divulgar o conhecimento produzido pelas mulheres, de expor a condição feita às mulheres no mundo por um patriarcado sempre ativo, de ajudar a transformação da realidade, em um feminismo sempre alerta. Atualmente a Labrys é indexada por sistemas como a Capes e a Biblioteca Nacional da França e é considerada uma revista científica de renome.” Acesse: http://www.tanianavarroswain.com.br/labrys/
Revista Gênero – UFF: “A revista Gênero é um periódico de circulação nacional. Surge em 2000 como uma iniciativa do Núcleo Transdisciplinar de Estudos de Gênero vinculado, inicialmente, à PROEX,/UFF e, a partir de 2004, ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Politica Sociail. da UFF. Publica ensaios, relatos de pesquisa, resenhas e entrevistas destinados a divulgar contribuições teóricas de interesse dos estudos feministas e de gênero nas diferentes tradições disciplinares, num arco de questões que dizem respeito às feminilidades, às homossexualidades e às masculinidades dentre outros temas correlatos.” Acesse: http://www.revistagenero.uff.br/index.php/revistagenero
Revista Gênero na Amazônia – UFPA: “A Revista Gênero na Amazônia, busca romper com as dificuldades regionais em torno da área editorial, procurando divulgar estudos interdisciplinares sobre mulheres e gênero, com o compromisso de manter a interlocução com as autoras e autores das demais regiões que tratam do tema, socializando os saberes e práticas das mulheres desses espaços, fomentando mais esta estratégia de disseminação de estudos em suas diferentes manifestações e enfoques teórico-metodológicos, numa perspectiva inter e multidisciplinar.” Acesse: http://www.generonaamazonia.ufpa.br/
Caderno Espaço Feminino – UFU: “O Caderno Espaço Feminino é uma publicação do Núcleo de Estudos de Gênero e Pesquisa sobre a Mulher, do Centro de Documentação e Pesquisa em História (CDHIS), da Universidade Federal de Uberlândia. Revista Indexada no Data Índice de Ciências Sociais - IMPERJ, Qualificada pela CAPES.” Acesse: http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem
ps: Hoje recebi por correio eletrônico o livro do II Colóquio de estudos feministas e de gênero. Ele está disponível na internet e pode ser acessado pelo seguinte link: http://media.wix.com/ugd/2ee9da_e10f81157da84b8f881635643ba9400d.pdf


[1] REVEL, Jacques. Proposições: ensaios e história e historiografia. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2009, p. 97.
[2] SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. In: Educação e realidade, São Paulo, v. 2, n. 20, jul/dez, 1995.

site da Anis.org

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Escola Paulista de Magistratura recebe inscrições para curso

Estão abertas até o dia 4 de setembro as inscrições para o curso “Temas Controvertidos em Direito de Família e Sucessões”, promovido pela Escola Paulista de Magistratura (EPM), sob coordenação do desembargador Ênio Santarelli Zuliani e da Juíza Flávia Poyares Miranda. Além de profissionais do Direito, as aulas são voltadas para psicólogos, assistentes sociais, peritos e auditores. Outros interessados também podem se matricular, desde que graduados.

As aulas serão ministradas de 10 de setembro a 5 de dezembro, às quartas-feiras, na sede da EPM (Rua da Consolação, 1.483, em São Paulo). São oferecidas 150 vagas para a modalidade presencial e 400 vagas para aulas à distância.
O valor total do curso é de R$ 300, mas há descontos para diferentes categorias profissionais. Magistrados do Tribunal de Justiça de São Paulo, servidores do TJ-SP e do Tribunal de Justiça Militar de SP terão desconto de 100%. Funcionários inativos do TJ-SP têm 60% de desconto. Já magistrados de outros tribunais e demais servidores públicos terão desconto de 50%. Conciliadores com comprovação do tribunal onde atuam terão desconto de 20%.
Clique aqui para ler o edital.
Clique aqui para preencher o formulário de inscrição.
Veja abaixo a programação completa.
Data: 10/9
Tema: O Direito de Família contemporâneo. Mudanças e perspectivas. A importância do Judiciário e a preparação do Magistrado para os novos desafios.
Palestrante: Ministra Nancy Andrighi.
Data: 17/9
Tema: Responsabilidade civil e Direito de Família. Litígios relacionados com dissoluções de casamento e união estável. A emblemática questão da quebra do dever de fidelidade. Rompimento de noivado.
Palestrante: Professora Regina Beatriz Tavares da Silva
Data: 25/9
Tema: Concorrência sucessória testamento, cotas empresariais bens indivisíveis usucapião de cota sucessória petição de herança e fixação de aluguel Direito real de habitação remoção de inventariante antecipação de herança legítima e parte disponível.
Palestrante: Professor Douglas Phillips Freitas
Data: 1/10
Tema: A guarda compartilhada e a nova “lei das palmadas”. Abandono afetivo dos filhos. As tentativas de alienação parental e suas consequências.
Palestrante: Professora Ana Carolina Silveira Akel
Data: 8/10
Tema: A importância do planejamento patrimonial e sucessório. As fraudes na partilha de bens e as medidas judiciais tendentes a impedir o prejuízo do outro cônjuge e da família.
Palestrante: Professor Rolf Madaleno
Data: 15/10Tema: As reorganizações societárias como forma de prejudicar cônjuges em processo de separação ou divórcio. Prevenções e jurisprudência.
Palestrante: Professor Diogo Leonardo Machado de Melo
Data: 22/10
Tema: Perícia Psicológica e sua função – Interdisciplinaridade.
Palestrante: Professora Evani Marques da Silva
Data: 29/10
Tema: Panorama geral de alimentos. As medidas cautelares e incidentais no Direito de Família. O papel do Advogado. Importância e risco das providências para os interesses do casal.
Palestrante: Professor José Roberto Pacheco Di Francesco.
Data: 5/11
Tema: Sucessão dos Companheiros. O controvertido artigo 1.790 do Código Civil.
Palestrante: Professor Zeno Veloso
Data: 12/11
Tema: As questões de estado decorrentes das variadas entidades familiares e alterações do paciente. Comentários de casos apreciados pelos Tribunais no âmbito da família e sucessões.
Palestrante: Professor Rodrigo da Cunha Pereira
Data: 19/11
Tema: Adoção
Palestrante: Desembargadora Maria Berenice Dias
Data: 26/11
Tema: As ações do Direito de Família e o processo civil. O Juiz e as formalidades. Poderes de instrução e de execução. As ações de alimentos, inclusive gravídicos e a forma de executar. Transmissibilidade, renúncia e exoneração.
Palestrante: Juiz Marco Aurelio Paioletti Martins Costa
Data: 3/12
Tema: Temas controvertidos quanto ao regime de bens. Bens que se comunicam e que não se comunicam. Efeitos sucessórios. Cônjuge e Companheiro. Os pactos patrimoniais e a autonomia de vontade.
Palestrante: Professor José Fernando Simão
Data: 4/12
Tema: As relações homo afetivas. Como julgar? Consequências na sociedade e na vida dos filhos.
Palestrante: Professor Flávio Tartuce Silva
Data: 5/12
Tema: Procriação. Biotecnologia. Relação jurídica de Filiação. Procriação Medicamente assistida. Desafios da Bioética e do Judiciário.
Palestra de encerramento com os Coordenadores sobre as principais controvérsias discutidas durante o Seminário.
Palestrante: Conselheira do CNJ Deborah Ciocci (a confirmar)

Acórdão Criminal Analisa Discriminação contra Idosa Mulher

Em brilhante e profunda análise, o desembargador criminal analisa o contexto de situação comum às Varas de Família, a união e convívio entre uma pessoa idosa e outra pessoa jovem. Esta situação, corriqueira nas Varas de Família, chegou ao juízo criminal para análise de crime de estelionato pelo fato de que um homem com 26 anos teve convívio com uma mulher de mais de 80 anos. Não ficou claro se possuíam uma relação caracterizada como união estévl, porém restou claro que o Poder Judiciário deve ser desprovido de pré-conceitos.

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 APELAÇÃO nº 0093058 40 2009 8 19 0001 LF

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

TERCEIRA CÂMARA CRIMINAL

APELAÇÃO CRIMINAL nº: 0093058-40.2009.8.19.0001

RELATOR: DESEMBARGADOR PAULO RANGEL

 

APELAÇÃO EXCLUSIVA DO RÉU. RÉU CONDENADO A 4 ANOS E 2 MESES DE RECLUSÃO E 62 DM POR VIOLAÇÃO AO ART. 171 DO CP, EM CONTINUIDADE DELITIVA. CRIME DE ESTELIONATO PRATICADO, SEGUNDO A DENÚNCIA E A SENTENÇA, PELO APELANTE CONTRA UMA MULHER IDOSA. ALEGAÇÃO DE QUE O FATO É TÍPICO, ANTIJURIDICO E CULPÁVEL, NÃO HAVENDO QUALQUER CAUSA EXCLUDENTE DA ILICITUDE OU DA CULPABILIDADE, AGINDO O APELANTE LIVRE E CONSCIENTEMENTE NA EMPREITADA DE OBTER VANTAGEM PATRIMONIAL INDEVIDA EM DESFAVOR DA VITIMA, OBTENDO UM ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. POSSÍVEL RELAÇÃO AFETIVA EXISTENTE ENTRE O APELANTE E A VÍTIMA DURANTE AULA DE INFORMÁTICA QUE SE ESTENDEU À CASA DA VÍTIMA. RELAÇÃO QUE DUROU SETE ANOS. ALEGAÇÃO DEFENSIVA DE QUE O FATO É ATÍPICO. A ABSOLVIÇÃO É MEDIDA IMPERIOSA DE JUSTIÇA.

 

A tese defensiva merece prosperar. A fundamentação preconceituosa da sentença de que uma mulher aos seus 76 anos não pode se envolver, se encantar ou se envaidecer com um galanteio de um homem mais novo é fruto de uma sociedade machista que somente permite que tal situação se dê com um homem mais velho e uma mulher mais nova. Crime de estelionato que pressupõe o dolo como antecedente e a prática de ardil, engodo, fraude que, no caso em tela, estão ausentes. Princípio da autonomia da vontade que deve prevalecer sobre as regras machistas de uma sociedade hipócrita que não aceita uma mulher mais velha conviver, ainda que em mera “relação profissional de cuidador” com um homem mais novo, quanto mais em relação afetiva, amorosa. Ausência de qualquer prova de que a vítima estivesse sendo enganada ou ludibriada. O mero fato de ser mais velha não lhe retira o discernimento necessário para dispor, como bem queria, do seu patrimônio e quiçá, se fosse o caso, do seu próprio sentimento e do seu corpo. Livre arbítrio. Mulher que não pode mais ser tratada, em pleno século XXI, como um ser inferior e desprotegido.

Sentença que ao analisar o caso está calcada em conceitos de uma sociedade feudal, patriarcal, machista do século XIX, de uma sociedade escravocrata ao dizer que “uma mulher, idosa, viúva e que residia sozinha está vulnerável porque criada sob fortes preceitos morais”. Quais os preceitos morais a que a sentença se refere? Àqueles que admitem que um homem mais velho, de 80 anos, possa ter uma moça de 30 e esta não ser acusada de estelionato, mas jamais o contrário. Puro preconceito. Sentença calcada num Contrato Social em que o patriarca é o personagem principal do Pacto, deixando mais uma vez a mulher para um segundo ou terceiro plano. A senhora H M. de Veiga Lima, suposta vítima nestes autos, viveu a vida como queria viver, longe de qualquer preconceito e viveu feliz já no auge dos seus 82 anos de idade, sem ter que dar satisfação a quem quer que fosse. Fato atípico. Absolvição que é medida de justiça.

 

Por tais razões, CONHEÇO do presente recurso e no MÉRITO dou PROVIMENTO para reformar a sentença e ABSOLVER o apelante Eduardo Marins de Souza com fulcro no art. 386, III do CPP.

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Chamamos de julgamento (isto é, a faculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensivamente) a percepção acertada do que é equitativo. Uma prova disto é o fato de dizermos que uma pessoa equitativa é, mais que todas as outras, um juiz compreensivo, e identificamos a equidade com o julgamento compreensivo acerca de certo fatos. E julgamento compreensivo é o julgamento no qual está presente a percepção do que é equitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente é julgar segundo a verdade1.

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de recurso de apelação nº. 0093058-40.2009.8.19.0001 em que figura como Apelante Eduardo Marins de Souza e como Apelado o Ministério Público,

 

ACORDAM os Desembargadores que integram a Colenda Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em julgamento realizado nesta data, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso defensivo.

 

VOTO

 

Presentes os requisitos objetivos e subjetivos da presente apelação conheço do recurso.

Os autos deste processo retratam bem a realidade hodierna em nossa sociedade, qual seja: quando um homem de 76 anos resolve se envolver com uma moça 50 anos mais nova a sociedade “reclama”, mas não a acusa de estelionato. Quando muito a chama de “aproveitadora” para não utilizar palavras de baixo calão nesta decisão. O homem aparece aos olhos de todos como o “garanhão”, o “macho”, o “provedor”, o “coroa que pega a garotinha”, mas todos se calam e respeitam o homem idoso. Quando muito o chamam de “velho babão”. Já a mulher enfrenta o preconceito machista de uma sociedade que não admite que ela possa, por livre escolha e espontânea vontade, se relacionar com um homem mais jovem. Vejamos parte da sentença, in verbis:

Para um homem jovem é muito simples manipular o ego fragilizado de uma mulher idosa, angariando sua simpatia e amizade, pois esta mulher viveu sob critérios rigorosos durante sua juventude e casamento, e agora está frágil no mundo moderno, por isto se encanta com qualquer frase chavão de galanteio barato, sorrisos falsos, elogios enganosos, segurando a primeira bengala maliciosa e desairosa, para elevar sua autoestima quando já percebe que não consegue dominar toda a sua capacidade. Esta bengala mambembe é uma forma de dizer ao mundo que "ESTÁ COM ALGUNS ANOS DE IDADE MAIS AINDA É MULHER, E DESEJÁVEL", assim ele lança o ardil da isca da vaidade para aflorar o ego de uma pessoa que não mais consegue dominar sequer a memória (sem grifos no original).  Qual o critério que a sentença utiliza para chegar à conclusão de que uma mulher idosa tem o ego fragilizado? De onde surgiu a prova cabal e incontestável de que a suposta vítima H. era uma “mulher fragilizada”? Só pode ser do senso comum teórico do operador jurídico2 de que toda mulher mais velha é frágil. Aliás, de que a mulher, por si só, é sempre um “sexo frágil”. Aqui a sentença deveria, pelo menos, ouvir a velha e boa música de Erasmo Carlos:

 

Dizem que a mulher é o sexo frágil

Mas que mentira absurda

Eu que faço parte da rotina de uma delas

Sei que a força está com elas 3.

 

Música também é cultura.

 

A afirmativa de que a vítima viveu “sob critérios rigorosos durante sua juventude e casamento, e agora está frágil no mundo moderno” não passa no filtro axiológico de uma analise crítico construtiva de que toda mulher tem o direito, não importa sua idade, de viver como bem entenda livre de qualquer pré-conceito moral, religioso ou social de quem quer que seja, desde que não agrida o direito alheio.

A suposta vítima, Sra. H. M., viveu como quis e como o ordenamento jurídico lhe permitiu: livre, leve e solta.

A afirmativa ainda da sentença de que a vítima se encantou com qualquer frase chavão de galanteio barato, sorrisos falsos, elogios enganosos, segurando a primeira bengala maliciosa e desairosa, para elevar sua autoestima quando já percebia que não conseguia dominar toda a sua capacidade chega a ser humilhante à suposta vítima. De onde a sentença tirou que a autoestima da suposta vítima estava baixa? Já sei. Do fato de ser uma mulher de 80 anos de idade, talvez. Puro exercício de adivinhação para não dizer puro preconceito social.  

A autoestima da senhora H. M. estava tão alta que ela se permitiu viver, quiçá um romance ao final da vida com um homem mais novo (não há prova cabal de que havia um romance entre apelante e a senhora H.. Mera suposição). Aliás, bem fez a senhora H. em viver o final da sua vida ao lado de um homem mais jovem. Nada contra a mulher que tem a opção de viver ao lado de um homem da sua idade, mas também não podemos ter nada contra a opção da senhora H. M.. Cada um vive da maneira que o faz ser feliz ou pelo menos da maneira que acha que alcançará a felicidade.

De agora em diante não a chamarei mais de vítima, e sim apenas de Senhora H. M. como ela sempre exigiu que a chamassem. Vitimas são as mulheres que não se permitem viver um romance, um amor, uma paixão ou uma simples amizade mais íntima por um homem mais novo. Estas são vítimas do preconceito social. São vítimas de uma sociedade machista, hipócrita. Ou ainda pior: vítimas são as milhares de mulheres que, LAMENTAVELMENTE, sofrem agressões físicas dos seus companheiros e demais homens covardes por esse país a fora. Não foi o caso da senhora H.. Ela viveu feliz ao lado do apelante 4.

O problema é que a felicidade envolve liberdade, seja ela subjetiva ou objetiva, e aqui reside uma das maiores questões da filosofia: o fenômeno versus essência. Isto é, a possibilidade de que o que se sente como liberdade não seja de fato liberdade; que as pessoas possam estar satisfeitas com o que lhes cabe mesmo que o que lhes cabe esteja longe de ser ‘objetivamente’ satisfatório; que, vivendo na escravidão, se sintam livres e, portanto, não experimentem a necessidade de se libertar, e assim percam a chance de se tornar genuinamente livres5. Isso faz com que as pessoas sejam forçadas ou seduzidas a experimentar a necessidade de ser objetivamente livres e reunir a determinação e coragem de lutar pela liberdade, diante das dificuldades que o exercício pela liberdade possa acarretar.

E continua a sentença em sua análise puramente preconceituosa e machista:

Para um homem jovem é muito simples manipular o ego fragilizado de uma mulher idosa, angariando sua simpatia e amizade, pois esta mulher viveu sob critérios rigorosos durante sua juventude e casamento, e agora está frágil no mundo moderno, por isto se encanta com qualquer frase chavão de galanteio barato, sorrisos falsos, elogios enganosos, segurando a primeira bengala maliciosa e desairosa, para elevar sua auto estima quando já percebe que não consegue dominar toda a sua capacidade. Esta bengala mambembe é uma forma de dizer ao mundo que "ESTÁ COM ALGUNS ANOS DE IDADE MAIS AINDA É MULHER, E DESEJÁVEL", assim ele lança o ardil da isca da vaidade para aflorar o ego de uma pessoa que não mais consegue dominar sequer a memória.

Primeiro, diz a sentença: Toda mulher idosa tem o ego fragilizado. Segundo, o fato de ser idosa faz com que não consiga dominar toda sua capacidade e precise usar de uma “bengala mambembe” para se sentir desejada. O que a sentença faz com a senhora H. é pior do que o apelante fez, segundo a denúncia: a coloca em uma posição de inferioridade e de total demência por ter tido eventual relacionamento, seja profissional, seja amoroso, seja de amizade ou de pura confiança com um homem mais novo.

Confesso de público, que nunca vi uma mulher ser tratada dessa forma num processo criminal. É uma pena e lamentável que a senhora H. M. não esteja mais entre nós, mas também ainda bem que ela não está aqui para ler essa sentença e saber que tudo que fez, nos últimos anos da sua vida por livre e espontânea vontade, é considerado como crime por parte do homem que ela escolheu para deliberar sobre seu patrimônio e os últimos anos da sua vida.

O dinheiro era dela. Ninguém, absolutamente ninguém, tem nada a ver com o quantum que ela gastou com o apelante. Não existe herança de pessoa viva. Aliás, se ela não tivesse gasto seu dinheiro com o apelante e tivesse guardado num cofre bancário será que a família estaria preocupada com o fato dela se envolver com um homem mais jovem? A resposta cabe a cada um.

Vejamos o que diz a neta da senhora H. M., in verbis:

"Que frequentava muito a casa da vítima; que reconhece o acusado; que o conheceu na casa de sua avó por volta de 1998; que na época tinha catorze anos; que o réu era professor de informática de sua avó; que não tinha curiosidade para aprender informática com ele porque tinha computador desde os treze anos e era autoditada; que ia para a casa de sua avó depois da escola; que viu o acusado dando aulas para a sua avó, mas era no inicio das aulas; que quando a depoente fez 18 anos, começou a perceber a presença do acusado na casa de sua avó fora do contexto das aulas; que a vítima pediu que a depoente não frequentasse a sua casa nos dias de aula de informática; que notou mudança no comportamento de sua avó; que a família começou a desconfiar porque a vítima fazia aulas há três anos e não sabia nada de informática; que a vitima não sabia usar a Internet; que ninguém interferiu por causa da idade dela; que a vítima mesmo reclamava que não conseguia manusear o computador, nem o básico; que a depoente percebeu que o acusado tinha intimidades na casa da vitima que nem familiares tinham; que a depoente se recorda de uma vez encontrar o acusado deitado no sofá da casa de sua avó e pedindo coisas; que a vítima levava o acusado para comer fora; que quando as pessoas estavam notando algo estranho, a vítima pediu para que ninguém fosse até a casa dela quando o acusado estivesse lá; que a vítima não queria que o acusado esquentasse a cabeça com nada; que não se magoasse com nada; que sua avó comprava água Perrier porque era da preferencia dele; que nunca viu os outros empregados da casa deitados no escritório; que sua avó era muito discreta e que depois que conheceu o acusado passou a usar roupas curtas; que nessa época a vitima estaria com 83 anos; que a vítima fazia muita questão de levar o acusado para sair; que a depoente foi almoçar com sua avó no Fashion Mall e o acusado disse que ia pagar a conta e a vítima disse que não precisava; que quando o acusado foi ao banheiro, a vítima disse que ele nunca pagava a conta e estava fazendo charme; que os empregados nunca presenciaram a vítima e o acusado abraçados; que Eduardo era carinhoso com a vítima; que a vítima reprimia muito a depoente porque não era tão efusiva com o acusado; que o fato da depoente ser fria com o acusado, a incomodava; que a depoente via Eduardo como um reizinho de sua avó; que a fonte de renda da vítima era os aluguéis dos apartamentos que comprou quando era casada com seu avó e a pensão alimentícia do seu avô que se aposentou como Desembargador do Tribunal de Justiça; que a interdição de sua avó foi de um ou dois anos depois que sua avó ficou doente; que quando a vitima ficou doente pediu auxilio para a família e logo após parou de andar e de se comunicar; que a vítima fazia  curso de psicanalise na Candido Mendes em 2003; que sua avó passou a delegar algumas funções ao acusado, mas a depoente não sabe quais; que o acusado passou a fazer acompanhamento bancário da vítima; que a vitima nunca disse a depoente que o acusado era seu namorado; que a vitima comprava camisas bonitas para o acusado porque ele gostava (sem grifos no original).

O depoimento da neta da senhora H. é claro em demonstrar que sua avó viveu feliz. Mudou seu comportamento passando a agir de forma mais positiva. Passou a usar roupas curtas aos 80 anos de idade. Sair com um homem mais novo e pagar restaurantes caros a ele num dos shoppings centeres mais caros do Rio de Janeiro: Fashion Mall. Em outras palavras: ela estava feliz fazendo o que tinha vontade, até porque, diferente do que diz a sentença, passou a vida toda se punindo, se policiando, sendo vigiada e com “comportamento recatado” e agora ao final da vida se permitiu viver a vida como ela é e não como gostariam que ela vivesse. A isso chamamos de livre arbítrio ou no direito de princípio da autonomia da vontade.

Posso dizer, sem receios, que a senhora H. se modernizou aos 76 anos de idade. “Ser moderna é ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de constante transgressão6”. Foi isso que ela fez. Não se acomodou. Não se intimidou com uma sociedade machista, hipócrita e hegeliana (com preconceitos e racismos).
 

O depoimento do genro da senhora H. M. também nos demonstra que ela era uma mulher viva, perspicaz e muito inteligente. Vejamos:

que a vitima era muito independente; que notou mudanças no estilo de se vestir da vitima; que ela era uma senhora muito conservadora; que a vitima era muito recatada, inteligente, elegante; que era dedicada ao marido; que a vitima antes de conhecer o acusado, usava sapatos finos e depois passou a usar sapatos com o solado mais alto, vestidos curtos; que a vitima saiu do padrão social dela; que a vítima passou a querer ser mais jovem; que um dia o depoente foi ao Barra Shopping e viu a vitima e o acusado abraçados como se fossem um casal que o depoente ficou chocado com a cena; que não imaginava como uma pessoa que não era da família podia fazer isso com uma pessoa como sua sogra; que depois desse dia, o depoente percebeu que o relacionamento dos dois não era de professor e aluna; ; que a vitima era muito rígida e reservada e por isso exigia que todo mundo a chamasse de "Dona H."; que depois que o acusado apareceu na vida da vitima, ela pedia para que a chamassem de "H."; que a vitima dava cheques em branco para o depoente, para as filhas do depoente e para sua esposa, como forma de presentes; que passou a analisar a transição bancária pretérita da vitima depois que o acusado interpôs uma ação trabalhista" (sem grifos no original).

 

Mais uma vez o depoimento visto e lido sem preconceitos demonstra claramente que a Senhora H. M. viveu feliz. Era inteligente (só uma mulher inteligente, não necessariamente rica, se dispõe a viver com um homem mais novo do jeito que a vida lhe permite viver). O genro ficou chocado com a cena da Senhora H. estar abraçada ao apelante. Claro que não ficaria chocado se visse um homem da idade dela com uma moça mais jovem. Aliás, talvez até aplaudisse como todos fazem, diariamente, pelas ruas do País e achasse graça.

Há uma frase que roda o País a fora dita por um senhor de 80 anos de idade, milionário, que ficou famosa e que retrata bem o machismo que envolve a questão. Numa entrevista o repórter perguntou a ele sobre as moças mais jovens e lindas com as quais ele desfilava nas festas e eventos sociais:

 

Repórter: - O senhor acha mesmo que essas garotas gostam do senhor?

Senhor: - Meu amigo, eu gosto muito de camarão. Vou a um restaurante e peço um prato desta iguaria. Eu não pergunto se o camarão gosta de mim... Eu simplesmente como!"

 

Aí está. Se uma mulher diz isso, será tachada de todos os nomes negativos que houver no dicionário. Não há nada de errado com a mulher jovem que quer se submeter a essa situação, mas também não há nada de errado na situação dos autos desta apelação. Cada um é livre para fazer o que bem entende da sua vida, desde que respeite o direito alheio e a senhora H. respeitou: sempre viveu dentro dos padrões de legalidade e moralidade.

A ex professora de francês da vítima, CLAUDIA MOTTA ANTONACCIO, também prestou depoimento em juízo e deixou clara a personalidade da vítima.

"Que reconhece o réu; que conhece ele da casa da "Dona H.", a vitima; que conhecia a vitima desde os 19 anos; que a depoente já foi professora de Francês da vitima; que com aulas, as duas ficaram amigas; noite a sua casa; que a vitima nunca disse sobre o relacionamento com o acusado; que a vitima era uma pessoa reservada e com uma personalidade muito forte; que a vitima mudou seu modo de se vestir; que antes usava saias e blusas e depois passou a usar decotes, saias curtas, tamancos; que as roupas não era apropriadas para a idade da vitima; que a vitima dava presentes para o acusado independente de datas comemorativas".

 

Do depoimento acima são extraídos diversos estigmas que foram muito bem usados pela sentença, mas que divirjo e o faço pelos seguintes motivos: Primeiro: a vítima falava francês, ou seja, não era uma mulher desprovida de conhecimentos do mundo e, consequentemente, era viajada. Segundo: era uma mulher de personalidade forte, razão pela qual não admitia que controlassem sua vida. Sabia o que queria. Era determinada. Terceiro: sua personalidade forte e determinação com as coisas da vida a fez mudar e ter o direito de usar roupas mais ousadas. Um homem que faz uma mulher se sentir assim não pode ser chamado de criminoso, não importa a idade dela.

Todavia, vejam que o depoimento também é preconceituoso: “que as roupas não eram apropriadas para a idade da vítima”. Como se uma mulher da idade da vítima tivesse que seguir um padrão, um modelo previamente estabelecido pela sociedade e não pudesse sair daquele estereótipo criado por uma espécie de “contrato social”. É uma visão Hobbesiana da vida onde o estado tem o poder absoluto de controlar os membros da sociedade que lhes entregam sua liberdade e se tornam voluntariamente seus súditos para acabar com a famosa guerra de todos contra todos garantindo a segurança e a posse da propriedade7.

E aqui é que mora o perigo do depoimento acima que funda a sentença: a necessidade de controlar o comportamento da senhora H. M., a fim de que seu patrimônio não venha a ser dilapidado por terceiros estranhos à família. Ninguém, absolutamente ninguém, se preocupou se ela estava feliz. Se estava sendo amada, cuidada e segura nas mãos do apelante.

Aliás, diga-se de passagem, que o mais importante não foi dito na sentença: a neta da senhora H. M. disse em seu depoimento: que Eduardo era carinhoso com a vítima. Esta frase do depoimento sepulta a questão.

O problema é que a sentença acha, assim como todos os “dogmáticos de plantão”, que o Direito Penal irá salvar o mundo. Que as pessoas precisam ser punidas por violarem a norma de proibição inserta no texto legal. É o tal caráter preventivo geral da pena 8.

Então, para quem gosta de Direito Penal e quer a solução, através do Direito porque não consegue enxergar o mundo senão através de um texto de lei, vou me limitar a dizer: não houve o chamado dolo. A conduta é atípica e ponto final. Não vou perder tempo analisando aquilo que todo estudante de 2º ano do curso de Direito sabe: o dolo no estelionato é antecedente. Outra: o crime de estelionato é crime contra o patrimônio. Não houve lesão ao patrimônio da senhora H. M.. Muito pelo contrário, houve liberalidade dela sobre seu próprio patrimônio. Liberalidade exercida por uma mulher de temperamento forte; determinada; fluente em outros idiomas; reservada; que não permitia que a chamassem de “H.” e sim de “D. H.”, no auge dos seus 80 anos de idade; e, principalmente, uma mulher livre e pagadora dos seus impostos. O que querem mais?

Ainda para atender aos “dogmáticos de plantão”: não houve indução ou mantença de alguém em erro, através de um artifício, ardil, engodo ou fraude. Houve um acordo expresso e claro entre o apelante e a senhora H.: ela o pagava a quantia acordada, previamente, e ele ensinava o que ela quisesse aprender, além de tomar conta de suas coisas pessoais e lhe fazer companhia da forma que melhor conviesse a ambos.

 

A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR E QUE NÃO FOI FEITA EM MOMENTO ALGUM É: O QUE AS PESSOAS TÊM A VER COM A VIDA DA SENHORA H. M.? NADA. ABSOLUTAMENTE NADA.

E ainda no plano do Direito Penal aqui vai a lição de um dos maiores penalista da atualidade: ROGÉRIO GRECO9, in verbis:

A conduta típica de obter vantagem ilícita em prejuízo alheio é praticada mediante a fraude do agente, que induz ou mantém a vítima em erro.

A indução pressupõe um comportamento comissivo, vale dizer, o agente faz alguma coisa para que a vítima incorra em erro.

Por outro lado, a conduta de manter a vítima em erro pode ser praticada omissivamente, isto é, o agente, sabedor do erro em que está incorrendo a vítima, aproveita-se dessa oportunidade, silenciando a fim de obter a vantagem ilícita em prejuízo dela.

Pergunta-se: qual foi a vantagem ilícita obtida pelo apelante? Nenhuma. A senhora H. pagava o que ela havia acordado. E o fato do apelante ter a senha bancária da senhora H.? Era liberalidade dela. O patrimônio era dela. Qual o ardil, engodo ou fraude praticada pelo apelante? Nenhum. Tudo era e foi previamente acordado. Um contrato bilateral.

A sentença quer castigar essa conduta. Em verdade quando se pensa que se está protegendo a senhora H. (ou quiçá a sociedade) com a punição do apelante se está, em verdade, punindo-a igualmente. É a sentença dizendo, por linhas transversas o seguinte: “A senhora, D. H. M., não se comportou de maneira adequada para uma mulher idosa carente, indefesa, vaidosa, claudicante e desprotegida quando resolveu ter um envolvimento, no auge dos seus 76 anos de idade, com um rapaz mais moço que a senhora 50 anos. A senhora deveria ter vergonha de usar essas roupas típicas de uma moça de vinte e poucos anos, se comportando de forma adequada e arrumando um velho da sua idade. Como não o fez, não vejo outra saída a não ser estabelecer uma pena para seu contratante/criminoso, quiçá, seu amante. Vergonha”.

É exatamente isso que a sentença está dizendo com a condenação do apelante. A senhora H. M. e o apelante tornaram-se os inimigos da sociedade quando resolveram desafiar as regras pré-estabelecidas e uma delas é: uma mulher de 80 anos de idade NÃO PODE ter qualquer envolvimento com um homem 50 anos mais novo, mas o contrário é aceito: um homem de 80 com uma moça de 30 anos de idade. Hipocrisia. E aí, aqui, percebe-se “a constituição de um direito de punir, de castigar, de apenar o criminoso, que pela transgressão da norma jurídica de convivência social, tornou-se inimigo da sociedade inteira10. É exatamente isso que a sentença afirma ao punir o apelante.

Tanto o apelante como a senhora H. saem condenados na sentença. Imaginem a cena que a sociedade (hipócrita, diga-se de passagem) teve que assistir ao se deparar com uma mulher de 80 anos de idade e um rapazola 50 anos mais moço andando pelo shopping center de mãos dadas como se namorados fossem? É isso que a sentença está dizendo ao condenar o apelante.

Lamentável. Isso não é justiça para com a vida de uma mulher honrada, honesta, livre, viúva que dedicou a vida a construir uma imagem de retidão de caráter e dedicada a sua família. E pior: pagadora de seus impostos e que não devia nada a ninguém. Repito: NÃO DEVIA NADA A NINGUÉM, muito menos satisfação dos seus atos.

O que houve nos autos deste processo foi um ato de liberalidade e um acordo entre duas pessoas, movidos pelo princípio da autonomia da vontade. Se do acordo inicial de trabalho surgiu um relacionamento amoroso (ou não) entre ambos, isso não é problema do poder judiciário que tem coisas mais importantes a julgar, mas crime, aqui, não há.

A lição de CEZAR ROBERTO BITENCOURT11 é por demais explicativa, in litteris:

O Estado não pode – a não ser que se trate de um Estado totalitário – invadir a esfera dos direitos individuais do cidadão, ainda quando haja praticado algum delito. Ao contrário, os limites em que o Estado deve atuar punitivamente devem ser uma realidade concreta. Esses limites materializam-se através dos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade, da ressocialização, da culpabilidade etc. Assim, o conceito de prevenção geral positiva será legítimo “desde que compreenda que deve integrar todos esses limites harmonizando suas eventuais contradições recíprocas: se se compreender que uma razoável afirmação do Direito Penal em um Estado Social e democrático de Direito exige respeito às referidas limitações”.

A sentença ao explicar o mal de Alzheimer da senhora H. faz uma verdadeira confusão entre os efeitos da doença e a situação concreta dela, ou seja, não percebe que o que se diz da doença é incompatível com o que se fez nos autos do processo durante grande parte do tempo em que o apelante viveu com a senhora H.. Vejamos essa parte da sentença, in litteris:

O mal de Alzheimer é uma doença surda, que quando percebida já se encontra em certo grau de andamento, e sendo inicialmente assintomática a mudança de comportamento ocorre gradativamente, até que ao ser detectada o idoso já está num processo degenerativo mais acentuado. Vejamos a lição que o Doutor Dráuzio Varela, renomado e notório médico, nos dá sobre este mal que a cada dia assola de forma democrática, pessoas abastadas e pobres, de nosso pais, levando-as no final da vida ao quadro da demência senil (sem grifos no original).

Agora observemos o que diz o nobre Médico citado: Dráuzio Varella.

A doença de Alzheimer (Alois Alzheimer. neurologista alemão que primeiro descreveu essa patologia) provoca progressiva e inexorável deterioração das funções cerebrais, como perda de memória, da linguagem, da razão e da habilidade de cuidar de si próprio (sem grifos no original).

Ora, se quando a senhora H., dos 76 até os 83 anos, quando ficou ao lado e na companhia do apelante, mudou sua maneira de ser, mudou seu guarda roupa, passando a usar roupas mais curtas, mais joviais, andando de tamanco etc e toda preocupada com sua aparência, como os depoimentos já demonstraram, é óbvio que ela estava em perfeitas condições físicas e mentais e, portanto, a doença ainda não a acometia de forma a retirar-lhe a capacidade de se autodeterminar perante os fatos da vida. Tudo que fez foi em perfeitas condições físicas e mentais.

O problema é que quando uma mulher da idade dela resolve sair do estabelecido pelo senso comum teórico da sociedade machista em que vivemos, nós temos que inventar uma desculpa para os nossos preconceitos e puni-la; e a punição, mesmo que depois nossa desculpa se apresente como verdadeira, é dizer que ela só pode estar doente. Só pode estar com Alzheimer. Uma mulher normal não faria isso, diriam os “machistas e feministas de plantão”.

Por isso, um dos maiores gênios da música pop disse:

A mulher é o negro do mundo. A mulher é a escrava dos escravos. Se ela tenta ser livre, tu dizes que ela não te ama. Se ela pensa, tu dizes que ela quer ser homem.

(John Lennon).

Foi exatamente isso que aconteceu neste processo com a senhora H. M.: ela quis ser livre; ela quis, possivelmente, se entregar a um homem mais novo (não há uma linha sequer deste processo com prova cabal disso); ela, deliberada e espontaneamente, dispôs de parte do seu patrimônio e deu ao homem que a fazia feliz, não importa como, o quantum quis dar.

Por isso que a neta da senhora H. testemunhou e disse que sua avó estava feliz porque o apelante “era carinhoso com ela”, mas uma mulher nesta idade (80 anos) já não tem mais o direito de ser feliz, sendo chamada pela sentença de “senhora claudicante” (“o ardil criado pelo Réu, trouxe uma aragem de mocidade para uma senhora claudicante”).

O que será que o dicionário diz de claudicante? Incerteza; vacilante; hesitante; que comete erro ou falta; que revela imperfeição, falha ou deficiência (Houaiss, 2009), isto é, a senhora H. M., depois de tudo que viveu em sua vida, é chamada pela sentença de “senhora imperfeita, falha, deficiente, vacilante” porque se envolveu com um homem mais novo e quis, espontaneamente, dar a ele parte do seu patrimônio. Impressionante. Estou estupefato. Nunca imaginei que pudesse ler uma mulher ser tratada assim por uma sentença. E por que o foi? Porque nós acreditamos que o Direito Penal irá salvar a sociedade. Nós, profissionais do Direito, somos obtusos, ou seja, não enxergamos nada mais além do que o texto legal. Não conseguimos olhar o mundo através de uma lente diferente das leis que aprendemos nos bancos universitários. Não percebemos aquilo que tenho dito a exaustão e aqui repito: EMBAIXO DO PAPEL TEM GENTE. Embaixo do papel deste processo tem a história de uma mulher que passou anos de sua vida de forma honesta, correta, sincera e transparente. Uma mulher que construiu família criando filhos e netos e quis, ao final da sua vida, continuar a ser feliz. Só isso. Nada mais.

Nós perdemos o senso crítico. Não enxergamos o mundo como ele é, mas sim como nós gostaríamos que ele fosse e aí criamos nossos próprios fantasmas. Olhamos para o art. 171 do CP e buscamos nele a solução para nossos problemas e criamos mais um: condenamos um homem que fez uma mulher feliz e que, por liberalidade dela, usou de seu patrimônio. Isso ocorre diariamente com homens mais velhos e mulheres mais novas, mas....nossa moral não permite enxergar isso. Em verdade, nosso preconceito não deixa olharmos com os mesmos olhos.

A história da mulher na civilização mundial é marcada por uma deformação cultural que remonta a milhares de anos de opressão e para nos explicar isso não há ninguém melhor do que CARLOS ROBERTO BACILA12 em sua monumental obra, in litteris:

É que o Direito hoje reconhece igualdade entre homens e mulheres, a mesma isonomia ainda não se vê nas casas, nas ruas e nas empresas ou nos meios de comunicação. E isto por quê? Por que as mulheres são tratadas com inferioridade? Porque ainda existem regras que estão vigentes e que não são regras jurídicas. São regras práticas que consideram a mulher um ser inferior ao homem. Conferem-lhe um estigma. Enquanto essas regras práticas ou meta regras não forem modificadas, o real tratamento das mulheres será, por muito tempo, um tratamento discriminador e preconceituoso.

A vida da Senhora H. M. é o retrato do que se faz ao se analisar a individualidade na sociedade de um modo geral, em especial se a confrontarmos com os conceitos trazidos pelo “Grande irmão”, na obra clássica de George Orwell, em 1948, mas que leva o nome de 1984, onde a liberdade individual era (e ainda é) limitada e controlada por uma força extraordinária que era simbolizada por Orwell na figura do grande Irmão, ou seja, aquele que tudo vê, tudo sente, tudo sabe e tudo ouve.

É o Grande Irmão quem dissemina as regras a serem estabelecidas e seguidas por todas as pessoas, por isso BAUMAN, cita Walpole e diz que “o mundo é uma comédia para os que pensam, e uma tragédia para os que sentem”, ou seja, as pessoas que raciocinam e refletem sobre o que está a sua volta conseguem formular ou até mesmo agir, interagir e intervir sobre as demais pessoas, enquanto que outros que sentem, movem-se pelo coração, única e exclusivamente, sofrem porque podem ser manipulados, atingidos ou frustrados pelo não alcance de suas metas13. A senhora H. pensava e sentia e por isso não sofreu e nem aceitou que a manipulassem e se intrometessem em sua vida, viveu como queria viver: feliz ao lado de um homem mais moço.

Muitos talvez perguntem o porquê pelo qual a Senhora H. M. se permitiu se envolver com o apelante. Ela não disse, então nunca saberemos e não nos interessa. Era problema dela, mas ARTHUR SCHOPENHAUER 14, filósofo alemão do século XIX, tem uma resposta interessante quando estuda as “preferências físicas da mulher”:

É possível afirmar que, aos homens muito jovens, preferem elas aqueles cuja idade oscila entre trinta e trinta e cinco anos, embora os jovens representem a flor da beleza masculina. Não agem assim por gosto, mas devido aos instintos que as guiam, o qual reconhece nesses anos a plenitude da força geradora. Geralmente pouco ligam à beleza do rosto. A força e a coragem do homem causam nelas uma impressão decisiva porque essas qualidades são penhor de uma geração robusta. Com tais qualidades contam, também, para assegurar no futuro um protetor eficaz.

E termina seu estudo sobre o “Direito de Amar” afirmando qual a “Missão do homem segundo a mulher”:

As mulheres se convencem que a missão do homem é ganhar dinheiro e a delas é gastá-lo; se não o fazem enquanto o marido está vivo, depois de morto elas se vingam. Contribui para confirmar essa ideia, o fato de o marido lhes dar dinheiro, encarregando-as de dirigir a casa15.

Ciente de que a escolha da Senhora H. M. foi fruto de sua sabedoria, de sua experiência e de sua maturidade, bem como, do seu livre arbítrio é que estou convencido, por tudo que consta dos autos deste processo, que não houve crime de estelionato, e sim um livre e espontâneo acordo entre ela e o apelante, não restando a menor dúvida, de que por uma medida de justiça, a ABSOLVIÇÃO se faz imperiosa.

Por tais razões, é que CONHEÇO do presente recurso de apelação e, no MÉRITO, reformo a sentença para ABSOLVER o apelante EDUARDO MARINS DE SOUZA, com fulcro no art. 386, inc. III, do Código de Processo Penal.

É como voto Senhor Presidente!

 

Rio de Janeiro, 15 de julho de 2014.

 
                                                                          PAULO RANGEL

DESEMBARGADOR-RELATOR

 

 

1 ARISTÓTELES. (Tradução: Mario da Gama Kury). Ética a Nicômacos. 3 ed., Brasília: UNB, 2001, p. 123.

2 Warat nos ensina que o senso comum teórico dos juristas advém da crença que eles têm de um mundo que está a sua volta, mas que é baseado em conhecimentos vulgares que “traduzem necessidades em ideias. Trata-se de atividade intelectual do homem comum, resultante da percepção imediata e da utilidade do saber. É um saber que, provocando conotativamente a opacidade das relações sociais, afasta os juristas da compreensão do papel do direito e do seu conhecimento na sociedade” (WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. v. II, p. 34).

3 Erasmo Carlos, “Mulher”, música de 1981.

4 Estudo preliminar do Ipea estima que, entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil feminicídios, ou seja, “mortes de mulheres por conflito de gênero”, especialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros íntimos. Esse número indica uma taxa de 5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. Consulte http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagarcia.pdf. Acessado em 19/06/2014, às 14h10.

5 BAUMAN, Zygmunt. (Tradução: Plínio Dentzien). Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 24.

6 BAUMAN, Zygmunt. (Tradução: Plínio Dentzien). Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 37.

7 Leiam a obra de ROUSSEAU, J.J., o Contrato Social. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

8 A função da prevenção geral atribuída à pena criminal igualmente tem por objetivo evitar crimes futuros mediante uma forma negativa antiga e uma forma positiva pós-moderna. A forma tradicional de intimidação penal representa a dimensão negativa da prevenção geral: o Estado espera desestimular pessoas de praticarem crimes pela ameaça da pena (SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da Pena: Fundamentos Políticos e Aplicação Judicial. Rio de Janeiro/Curitiba: Lumen Juris/ICPC, p. 09, 2005.

9 GRECO, Rogério. CÓDIGO PENAL COMENTADO. 7 ED., Rio de Janeiro: Impetus, 2013, p. 561.

10 ISERHARD, Antônio Maria. Caráter Vingativo da Pena. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005, p. 134.

11 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 150.

12 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um Estudo sobre os Preconceitos. 2 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 50.

13 BAUMAN, Zygmunt. (Tradução: Plínio Dentzien). Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 65.

14 SCHOPENHAUER, Arthur. (Tradução: Aurélio de Oliveira). A Vontade de Amar. Rio de Janeiro: EDIOURO, 2001, p. 34.
 
15 SCHOPENHAUER, Arthur. (Tradução: Aurélio de Oliveira).A Vontade de Amar. Rio de Janeiro: EDIOURO, 2001, p. 55.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Tutela antecipada no divórcio

O que é o divórcio liminar?

Tire suas dúvidas sobre o divórcio liminar.

Publicado por Alexandre Cruz - 7 horas atrás
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Artigo do professor Pablo Stolze Gagliano

1. Introdução e Noção Básica de Divórcio

Não é novidade que o divórcio é uma medida dissolutória do vínculo matrimonial válido, importando, por consequência, na extinção de deveres conjugais.
Trata-se, em outras palavras, de uma forma de extinção da relação conjugal, sem causa específica, decorrente da simples manifestação de vontade de um ou ambos os cônjuges.
Em 2010, com a aprovação da Emenda Constitucional nº66, verdadeira revolução se fez sentir.
Suprimiu-se a separação judicial[1], desaparecendo, igualmente, o requisito temporal para o divórcio, que passou a ser exclusivamente direto, tanto por consentimento dos cônjuges, quanto na modalidade litigiosa.
Trata-se, como dito, de uma completa mudança de paradigma, em que o Estado buscou se afastar da intimidade do casal, reconhecendo a sua autonomia para extinguir, pela sua livre vontade, o vínculo conjugal, sem necessidade de requisitos temporais ou de motivação vinculante, na perspectiva do princípio da intervenção mínima do Direito de Família.
Vigora, mais do que nunca, agora, o princípio da ruptura do afeto – o qual busca inspiração no“Zerrüttungsprinzip” do Direito alemão (princípio da desarticulação ou da ruína da relação de afeto) – como simples fundamento para o divórcio[2].
É o reconhecimento do divórcio como o exercício de umdireito potestativo[3], cujo exercício somente compete aos cônjuges[4], não afetando, porém, a sua relação com os filhos.

2. Tipologia

Convivem, atualmente, em nosso sistema, duas modalidades de divórcio:
a) o divórcio extrajudicial ou administrativo, previsto pela Lei nº 11. 441, de 04 de janeiro de 2007, lavrado por Tabelião, mediante escritura pública, desde que seja consensual e não haja filhos menores ou incapazes[5].
b) o divórcio judicial – litigioso ou consensual-, por seu turno, desafia um procedimento conduzido por um Juiz de Direito, findando-se por meio da prolação de uma sentença.
Bem, o nosso interesse, na elaboração deste texto, não é trazer à baila noções tão comuns e amplamente conhecidas.
Pretendemos ir um pouco mais além.

3. Divórcio Liminar: Possibilidade Jurídica

Nada impede que, em se tratando de divórcio litigioso – aquele que desafia um procedimento judicial contencioso -, a parte autora acrescente ao pedido de dissolução do vínculo matrimonial pleitos de natureza diversa, como a fixação de pensão alimentícia, partilha de bens e definição da guarda de filhos, caracterizando uma cumulação de pedidos, a teor do art. 293 do Código de Processo Civil, especialmente à luz do seu parágrafo segundo, com os temperamentos peculiares ao Direito Processual de Família.
Nesse contexto, embora o pedido de divórcio seja de meridiana clareza e inegável simplicidade – por não exigir exposição de motivos ou fundamento – os demais poderão exigir uma instrução mais complexa, demorada e desgastante, impedindo a solução imediata da lide.
Em nossa experiência judicante, atuando por mais de 13 anos em juízo que também detinha competência para dirimir demandas atinentes ao Direito de Família, foi marcante a solicitação formulada, em audiência, por ambas as partes, marido e mulher, que também litigavam a respeito de pensão alimentícia e partilha de bens:
“Dr. Pablo, por favor, o senhor não poderia nos divorciar logo, enquanto o ‘processo corre’?”.
“Por que não?”, foi o pensamento que veio à mente.
O processo serve à vida.
Não haveria sentido em se manter aquele casal – cujo afeto ruiu – matrimonialmente unido, considerando-se não haver mais condição ou requisito para o divórcio, enquanto se discutiam – durante semanas, meses, ou, talvez, anos – os efeitos paralelos ou colaterais do casamento, a exemplo do valor da pensão ou do destino dos bens.
Raciocínio diverso, em uma sociedade acentuadamente marcada pela complexidade das relações sociais – no dizer profético de DURKHEIM – com todas as dificuldades imanentes ao nosso sistema judicial, é, em nosso sentir, uma forma de imposição de sofrimento àqueles que já se encontram, possivelmente, pelas próprias circunstâncias da vida, suficientemente punidos.
E este sofrimento – fala-se, aqui, em strepitus fori ­– prolonga-se, quando a solução judicial, em virtude de diversos fatores alheios à vontade do casal, não se apresenta com a celeridade devida.
Por isso, nada impede que o juiz, liminarmente, antecipe os efeitos definitivos da sentença, com amparo no art.273§ 6º, do Código de Processo Civil, para decretar, ainda no curso do processo, o divórcio do casal:
Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
I – haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
II – fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
(…)
§ 6º A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. (grifamos)
Empregamos, conscientemente a expressão “divórcio liminar”, na medida em que se trata de providência que pode ser adotada no limiar do processo, ou seja, in limine litis.
E não olvidamos que, em essência, trata-se da antecipação dos efeitos definitivos incontroversos da sentença, porquanto, como dito acima, por se tratar, o divórcio, de um direito potestativo, não haveria razão ou justificativa de mérito hábil a impedir a sua decretação[6].
Nesse contexto, podemos concluir, então, ser juridicamente possível que o casal obtenha o divórcio mediante uma simples medida liminar, devidamente fundamentada, enquanto ainda tramita o procedimento para o julgamento final dos demais pedidos cumulados.
Tal conclusão vai ao encontro dos princípios fundamentais do novo Direito de Família, na perspectiva sempre presente da dignidade da pessoa humana.[7]
E que eles sejam felizes.

Notas

[1] Em um dos pioneiros (quiçá o primeiro) acórdãos brasileiros sobre o tema, o TJMG enfrentou a questão, incidentalmente, afirmando expressamente a extinção da separação judicial no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se dos autos nº 0315694-50.2010.8.13.0000, relatado pelo Desembargador DÍDIMO INOCÊNCIO DE PAULA, com julgamento em 21/10/2010 e publicação do acórdão em 12/11/2010. Confira-se trecho do julgado: “É de se registrar que a doutrina vem entendendo que a edição da EC 66/10 extirpou do nosso ordenamento jurídico o instituto da separação judicial, prevendo como forma de extinção do vínculo matrimonial apenas o divórcio, o que geraria, por certo, superveniente impossibilidade jurídica do pedido formulado na ação originária deste recurso, culminando na extinção do feito sem julgamento do mérito. Não obstante, em homenagem aos princípios da economia e da celeridade processuais, tenho que deve ser possibilitada às partes a oportunidade de requerer a conversão de seu pedido de separação judicial em divórcio, porquanto é cediço que a extinção do processo os obrigará a manejar novo feito, agora pleiteando o divórcio, para que seja logrado seu objetivo, no sentido do desfazimento do vínculo matrimonial (…)”. No Estado da Bahia, por sua vez, em encontro promovido pela Corregedoria Geral da Justiça, os Juízes das Varas de Família da capital aprovaram, à unanimidade, proposta de enunciado no sentido do reconhecimento da supressão do instituto jurídico da separação, a partir da entrada em vigor da Emenda do Divórcio. Todavia, registro que se trata de matéria polêmica, havendo corrente que sustenta a mantença do instituto. Em nosso sentir, como dito, trata-se de figura obsoleta, cuja preservação, após a edição da Emenda, representaria violação ao denominado princípio da vedação ao retrocesso (sobre o tema, cf. O Novo Divórcio e Novo Curso de Direito Civil – Direito de Família – As Famílias em Perspectiva Constitucional, Ed. Saraiva, obras escritas em coautoria com Rodolfo Pamplona Filho, que serviram de base para este artigo).
[2] Sobre o divórcio na Alemanha, recomendamos a leitura das considerações de VOPPEL, Reinheard, Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch mit Einführunsgesezt und Nebengesetzen – Eckpfeiler des Zivilrechts, J. Von Satudingers, Berlin, 2008.
[3] Passamos todo o bacharelado em Direito ouvindo a expressão “direito potestativo”. Mas, de fato, compreendemos o seu sentido? Trata-se de um direito de interferência. Vale dizer, cuida-se de um direito que, ao ser exercido, interfere na esfera jurídica de terceiro, sem que esta pessoa nada possa fazer, a exemplo do direito de revogação ou de renúncia, no mandato, ou, como visto acima, do direito de divórcio.
[4] “Art. 1.582. O pedido de divórcio somente competirá aos cônjuges.
Parágrafo único. Se o cônjuge for incapaz para propor a ação ou defender-se, poderá fazê-lo o curador, o ascendente ou o irmão.”
[5] Outros Estados no mundo admitem a modalidade administrativa de divórcio, como se dá no Direito Português, a respeito do qual escrevem Francisco Coelho e Guilherme de Oliveira: “O processo de divórcio por mútuo consentimento ‘administrativo’, decidido em conservatória do registro civil, está regulado nos arts. 271-274. CRegCiv”, e, mais adiante, complementam: “A decisão do conservador que tenha decretado o divórcio é notificada aos requerentes e dela cabe recurso ao Tribunal de Relação.” (Curso de Direito de Família – Vol. I – Introdução – Direito Matrimonial, 2 ed., Portugal: Coimbra Editora, 2001, págs. 604-605).
[6] De fato, formulado o pedido de divórcio, no bojo de um procedimento judicial litigioso, uma vez citada a parte adversa, este ato citatório tem, em essência, a precípua função de dar-lhe ciência do pleito formulado, para permitir a instalação da relação jurídica processual. No mérito, todavia, a parte citada não terá maior espaço de defesa, na medida em que o pedido é imotivado, dispensando-se prazo mínimo para a sua apresentação. Ao menos em tese, e para efeito de investigação acadêmica, poderia o (a) demandado (a), em defesa, alegar a invalidade do casamento. De fato, a aferição da invalidade precederia a apreciação do divórcio. Todavia, na situação tomada como referência para o desenvolvimento argumentativo deste artigo, partimos da premissa de ser válido o casamento objeto do divórcio. Em tal hipótese, a capacidade defensiva de mérito do réu queda-se esvaziada.
[7] Devemos interpretar adequadamente a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Publicos), segundo o panorama normativo inaugurado pela Emenda Constitucional nº 66 de 2010, para se admitir que, não apenas em caso de sentença (como se lê em seu art. 167, II, 14), mas também de decisão interlocutória – em face da qual não haja recurso pendente – possa, o Oficial de Registro, proceder com a necessária averbação da dissolução do vínculo matrimonial.
STOLZE, Pablo. Divórcio liminarJus Navigandi, Teresina, ano 19n. 3960,5maio2014. Disponível em:. Acesso em: 5 maio 2014.
Fonte: site Jus Navigandi
Alexandre Cruz
Advogado, Especialista em Direito de Família e Consumidor.
Atuante na área do Direito de Família, Relações de Consumo e Relações Trabalhistas.