sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O processo de requalificação civil de transexual e o Poder Judiciário


autora: Maria Aglaê Tedesco Vilardo

Os processos de requalificação civil de transexuais têm sido recebidos pelo Poder Judiciário apesar de não existir lei brasileira sobre o tema.

Há ações propostas pelo Núcleo de Defensoria Pública e outras com advogados constituídos. A competência deve ser da Vara de Família, conforme vem sendo decidido por jurisprudência.


Os pedidos são para mudança de nome e de sexo no registro civil e muitas ações são propostas sem que tenha sido realizada a cirurgia de transgenitalização, mas sempre com a utilização de hormônios e o acompanhamento psicológico e social.


Os juízes são obrigados a decidir mesmo sem lei, desta forma buscam fundamentação na Constituição e argumentos da bioética para as sentenças.


Um dos fundamentos é a Portaria do Ministério da Saúde nº 2803/2013 que trata do­­ processo transexualizador que estabelece normas de saúde e atenção especializada a serem oferecidos pelo SUS. Devem ser oferecidos acompanhamento clínico pré e pós operatório e hormonoterapia, em diversas especialidades médicas, com psicólogo e assistente social. Para a redesignação sexual no sexo masculino há previsão de amputação do pênis e  constituição de neovagina, entre outras cirurgias. Para o procedimento em indivíduos do sexo biológico feminino há previsão de mastectomia e ressecção do útero e ovários. A cirurgia para constituição de órgão para o transexual masculino não ocorre no âmbito do SUS.


O Poder Judiciário não deve obrigar o indivíduo a realizar a cirurgia. O processo transexualizador nem sempre pode alcançar a constituição de neovagina. Ou por problemas fisiológicos ou por ausência de desejo do transexual em ser mutilado. Caso esta fosse a condição para a requalificação civil estariam sendo discriminados os transexuais masculinos, pois a cirurgia é extremamente complexa e não é oferecida pelo SUS. Os transexuais femininos, quando desejam a cirurgia, não conseguem ser contemplados com a agenda oferecida pelo SUS, com poucas marcações de cirurgias. Entretanto, obrigar alguém a se mutilar para obter a requalificação seria ferir o princípio bioético da não maleficência.


Outra fundamentação para os juízes é a Resolução nº 1955/2010 do CFM, uma norma ética para os profissionais médicos, que na omissão legislativa ampara as sentenças.  Nesta há previsão de que  esteja presente o desconforto com sexo biológico, o desejo de perder suas características sexuais e ganhar as do sexo oposto durante dois anos e a ausência de transtornos mentais. Nesta resolução a cirurgia de neofaloplastia é considerada experimental. A cirurgia de neocolpovulvoplastia é autorizada expressamente. Caso o Poder Judiciário exija a cirurgia para redesignação haveria notória discriminação de gênero em face do transexual masculino, raramente podendo alcançar a redesignação civil, o que fere o princípio constitucional da igualdade.


O tema é complexo e não fazia parte da formação dos juízes mais antigos. Hoje a Escola da Magistratura do Rio de Janeiro oferece no curso de Direito de Família aulas com professores especializados sobre o tema.


Algumas exigências vêm sendo superadas como  exigir certidões negativas dos cartórios, pois não teria fundamento, caso viessem com restrições, impedir a mudança no registro em razão destas.


O que se exige, primordialmente, é a vinda do histórico de acompanhamento médico, psicológico e social para a decisão favorável.


No Brasil, ainda não se pode realizar a mudança no cartório civil em razão da falta de legislação, porém o Judiciário vem tratando do tema com sensibilidade e oferecendo a formação continuada dos juízes para que possuam a compreensão bioética do tema, com base nos fundamentos constitucionais da igualdade e da não discriminação. No futuro, os legisladores deverão possibilitar seja feito dessa forma, como em diversos outros países.

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