quinta-feira, 12 de maio de 2016

USUCAPIÃO ESPECIAL E ABANDONO DE LAR – USUCAPIÃO ENTRE EX-CASAL

publicado na Revista de Direito de Família do IBDFAM vol.27- ano 2012

Maria Aglaé Tedesco Vilardo
Juíza de Direito Titular da 15ª Vara de Família da Capital do Rio de Janeiro
Coordenadora Acadêmica de Direito de Família da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro
Doutora em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (em associação da UERJ, UFRJ, UFF e FIOCRUZ)


Resumo
Entrou em vigor lei que cria nova modalidade de usucapião pelo abandono de lar, por dois anos, de ex-cônjuge ou ex-companheiro. Dúvidas surgem a respeito da aplicação da lei, especialmente da interpretação do abandono de lar. Esse conceito foi resgatado pelo legislador apesar do avanço da lei brasileira que permite o divórcio direto, além da construção jurisprudencial que afasta a culpabilidade no reconhecimento ao direito ao rompimento dos vínculos entre casais. Propõe-se a interpretação da nova lei de forma a realizar o intuito de proteção ao direito de moradia, compreendendo o abandono de lar como atitude de desamparo da família para conferir proteção àquele que se encontra em situação de vulnerabilidade permitindo a regularização do imóvel com agilidade. A ação deve ser processada e julgada em Vara de Família por se tratar de questão decorrente de direitos e deveres entre ex-casais.
Palavras-chave: direito de família - divórcio - usucapião – abandono de lar

Abstract
Recently enacted law creates a new kind of adverse possession after home abandonment, for two years, by ex-spouse or ex-partner. Questions arise regarding the application of the law especially the interpretation of the home abandoned. That concept was rescued by the legislator despite the advancement of brazilian legislation, that allowed the direct divorce as well as the jurisprudence that removes the guilt in recognizing the right to break the bonds between couples. The proposal is to interpret the new law in order to accomplish the aim of protecting the right to housing, taking the home abandonment as an act of family destitution to ensure protection to those who are in a  vulnerable situation allowing a faster regularization of property. The action must be prosecuted and tried in Family Court as it is a matter of rights and obligations between former couples. 

Keywords: family law – divorce- adverse possession – home abandonment

1- Introdução e relevância

O Programa Minha Casa, Minha Vida, implementado pela União, tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil seiscentos e cinquenta reais). 
Recentemente a Lei nº 11977, de 2009, que normatizou o Programa, foi alterada pela Lei nº 12424, de 16 de junho de 2011 que também alterou artigo do Código Civil relativo à usucapião. O art. 1240 trata da usucapião de área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, com prazo de 5 anos para tal forma de aquisição. O acréscimo se deu através do art. 1240-A que reduziu o prazo para 2 anos para aquisição por usucapião da propriedade dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar. Os demais requisitos já existentes foram mantidos em parte, conforme análise que faremos. Modificação importante diz respeito ao prazo menor ao se tratar de propriedade comum a pessoas casadas ou que vivam em união estável. Por isso interessa ao Direito de Família a análise desse instituto próprio do Direito das Coisas.
Essa nova forma de usucapião vem recebendo diversos nomes como usucapião familiar, usucapião conjugal, usucapião pró-família entre outros. Por ocorrer a usucapião entre ex-cônjuges e ex-companheiros será possível entre ex-casais casados civilmente ou que vivam em união estável, entre pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferente. Esse entendimento se coaduna com a recente decisão do STF e a força jurisprudencial dos Tribunais dos diferentes estados que vem reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Assim, essa forma de usucapião especial é usucapião entre ex-casal, expressão que abrange ambas as formas de família sem discriminar sexo.
O valor protegido é a moradia. O direito à moradia é constitucionalmente previsto como direito social. A utilização de novo instituto para preservar a moradia, e de forma desembaraçada, daquele que ficou no lar conjugal é conferir meios para se cumprir a Constituição Federal. Essa é a relevância da criação legislativa e deve ser aproveitada pelos juízes no sentido de conferir ampla aplicação da lei com interpretação de forma a atender aos fins sociais e ao bem comum tendo como propósito precípuo garantir o direito à disponibilidade do bem de moradia.

2- Objetivo e requisitos do novo instituto legal

O legislador quis conferir proteção para o cônjuge ou companheiro que permanecer residindo, após a separação, em moradia que era comum ao casal, em área urbana, com no máximo 250 m2.  A nova forma de usucapião estende-se a qualquer imóvel nessas condições e não somente aos adquiridos no mencionado Programa.
 Os requisitos para a usucapião são aqueles conhecidos de todo estudante de direito, com algumas nuances, acrescidos da novidade do abandono de lar: posse direta em regra com animus domini, mas dispensado pelo legislador neste caso; com exclusividade; de forma ininterrupta e sem oposição, durante 2 anos; utilizado para moradia do próprio ou da família; inexistência de outra propriedade urbana ou rural; inexistência de reconhecimento anterior desse direito; abandono do lar pelo ex-cônjuge ou companheiro.
A posse é aquela em que se tem o exercício de fato, pleno ou não, de alguns dos poderes inerentes à propriedade. Estes poderes são o de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. O animus domini é a intenção de ser dono. Não é a intenção comum de desejar adquirir um imóvel, mas a intenção jurídica e viável de ser proprietário pela possibilidade legal de se concretizar a propriedade. Esse animus significa que não existe obrigação final de restituir a posse. O art. 1.197 do CC normatiza que a posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto. Não se pode ter essa intenção, esse animus, quando a posse se desdobra em direta e indireta, como no caso de se estar alugando um imóvel ou o ocupando por empréstimo. Com a saída do cônjuge ou companheiro do lar comum teríamos o possuidor direto (o cônjuge que ficar no imóvel) e o possuidor indireto (aquele que deixou o imóvel). Por força da lei, a inexistência neste caso de animus domini entre possuidor direto e indireto em nada altera a possibilidade legal desta nova forma de usucapião. 
A exclusividade exigida por lei pode ser entendida como aquela posse de único bem e sem que possa incidir essa forma de usucapião quando há co-proprietários que não tenham sido cônjuges ou companheiros. A ausência de interrupção significa que o prazo deve ser contínuo, sem intervalos. A ausência de oposição diz respeito à manifestação do co-proprietário no sentido de continuar no exercício dos poderes inerentes ao domínio mesmo afastado fisicamente do imóvel. Portanto, o ex-cônjuge ou ex-companheiro teria que deixar de apresentar qualquer manifestação relativa a seu interesse sobre a propriedade durante 2 anos para caracterizar esse requisito. A oposição pode ser apresentada de diversas formas. Não bastaria um simples registro em sede policial ou uma notificação, pois há necessidade de comprovação do exercício dos poderes inerentes ao domínio, como a propositura de ação de partilha de bens. A ocupação deve ser pelo cônjuge ou sua família, como filhos, por exemplo, independentemente de serem do casal ou não. A lei não faz restrições de grau de parentesco.
Não penso que deva ser exigida a ação cautelar com pedido de afastamento do lar para não caracterizar o abandono, embora essa possa ser utilizada. Deve ser aceita qualquer manifestação exigível no direito civil que deixe evidenciada a manifestação do co-proprietário de que não deixou de exercer seus direitos de propriedade e suas responsabilidades para com a família não obstante seu afastamento. O propósito do legislador é facilitar a vida daquele que ficou no imóvel sem que o outro cônjuge ou companheiro tenha se preocupado em dar solução e partilhar o bem. A demonstração de cuidado com a prole, pagando a pensão alimentícia, por exemplo, é forte indicativo de que não há abandono.
A inexistência de reconhecimento anterior desse direito é redundante quando o legislador afirmou no parágrafo primeiro (na verdade único, pois o segundo foi vetado) que o mesmo somente será reconhecido uma vez e que o reconhecimento se dá desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Cabe fazer uma ressalva, pois se o objetivo de preservar o direito social constitucional à moradia poderá se dar através desse instituto novo, na hipótese em que a mesma situação de abandono de lar se repetir, como no caso de uma nova união ou casamento, com novo abandono do cônjuge ou companheiro e o imóvel em que residiam tenha sido substituído com a alienação daquele imóvel anterior adquirido por usucapião, pode-se inferir que permanece o direito de preservação de sua moradia. Caberia, assim, a utilização desta usucapião, mais uma vez. Não se trata de adquirir um segundo bem, mas preservar o bem com esta destinação.

3- O abandono do lar pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro 

A grande novidade, que ensejará muitas discussões no Direito de Família, diz respeito ao requisito abandono do lar pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro.  A expressão abandono do lar está no Código Civil quando trata da separação judicial e menciona que o abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo pode caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida. Aliás, letra morta diante da jurisprudência que vinha ignorando esta culpabilidade e da Emenda Constitucional que admite o divórcio direto, conforme nova redação do art.226, § 6º da CF.
O abandono do lar vinha sendo compreendido como uma situação em que um dos cônjuges ou companheiros saía de casa de forma voluntária e por motivação injusta. Ora, isso está totalmente ultrapassado. Quando um dos cônjuges deixa a casa comum, a intenção é cuidar de sua vida sem a interferência do outro e há muito tempo a jurisprudência majoritária é no sentido de que essa atitude não representa culpa na separação. A insuportabilidade do convívio não deve estar atrelada a uma ordem judicial ou mesmo uma comunicação de que se tomará tal decisão, até porque muitas vezes a decisão de sair de casa é tomada de forma inesperada e passional.
Muitas vezes, a mulher é forçada a sair de casa pelo marido através da prática de atos violentos e pressão psicológica. Outras vezes, o marido não suporta mais o convívio sob o mesmo teto e sai de casa para que não haja agressão física. Em nenhuma das duas hipóteses poderíamos caracterizar o abandono de lar, pois no primeiro caso não houve autonomia da vontade e no segundo houve um interesse que se sobrepõe que é a manutenção da incolumidade física e psicológica das partes, o que justifica deixar o lar. A prova do ocorrido não depende exclusivamente de processo junto ao Juizado de Violência Doméstica, podendo ser provada por outros meios. Cessada a violência ou ameaça o ex-cônjuge ou ex-companheiro deverá propor a ação para partilhar o bem comum.
O que causa perplexidade é termos que nos socorrer de conceitos que foram construídos para justificar o então desquite litigioso. O art.317 do Código Civil de 1916 trazia o abandono voluntário do lar conjugal durante dois anos como causa para o desquite. Naquela época era tão grave deixar o lar conjugal que os demais fundamentos que motivavam a ação de desquite, todos incluídos no mesmo artigo, eram o adultério, a tentativa de morte, sevícias, ou injúria grave. Cabia ao marido o direito de fixar o domicílio da família e à mulher competia segui-lo. O que caracterizava o abandono era a ausência com a intenção de desfazer os liames familiares. Observe-se que em 1916 o prazo para sua configuração era de dois anos, o mesmo hoje exigido pela lei nova. Segundo Carvalho Santos, a voluntariedade tinha como pressuposto a malícia, ausência de motivo justo, inocência do abandonado, que o abandono fosse mau (expressão utilizada pelo Código alemão), com violação consciente do dever da vida em comum sem justa causa.
A culpa da separação não é mais perquirida em juízo. O divórcio pode ser decretado sem qualquer outro questionamento além da vontade de ao menos uma das partes. O procedimento judicial de divórcio adquiriu um caráter meramente administrativo onde o outro cônjuge quando é citado na verdade está sendo notificado de que será decretado seu divórcio. As razões do fim do casamento, graves ou não, em nada alteram a decisão de não se conviver mais sob o mesmo teto ou podem ter força para interferir nos demais direitos e deveres correlatos ao casamento ou união.
Embora tenha sido resgatado esse instituto do abandono, não se pode utilizar o mesmo conceito do século passado. Para conferir legitimidade à lei devemos entender o abandono de lar como a saída do lar comum de um dos cônjuges e a sequencial despreocupação com o dever de assistência ao cônjuge ou com o cuidado dos filhos. Como exemplo: quando deixa de pagar voluntariamente pensão alimentícia aos filhos, quando é procurado após a separação de fato para pagar pensão aos filhos ou ao ex-cônjuge ou ex-companheiro e não é encontrado para ser citado, quando apesar de ter proposto ação de oferecimento de alimentos ou ter sido citado em ação de alimentos não paga os alimentos provisórios e nem os alimentos definitivos. Persistindo essas situações pelo prazo de dois anos daria ensejo à usucapião.
Caso não haja necessidade de alimentos para o ex-cônjuge ou ex-companheiro ou por ausência de filhos menores de idade o abandono poderia ser caracterizado pela ausência de contribuição para pagamento dos impostos relativos ao imóvel, na ausência de acordo sobre tal pagamento por aquele que ficou residindo. Da mesma forma, se o bem permanece sendo utilizado por um dos cônjuges e o outro deixa o imóvel sem propor ação para partilhar o bem ou ação de divórcio com cláusulas regulando o uso do imóvel ou um acordo extrajudicial onde conste que o bem permanecerá em condomínio entre ambos, poderá dar ensejo a caracterização do abandono de lar. As possibilidades mencionadas são aplicadas também à união estável.
Cabe salientar que a dívida de alimentos não estaria sendo paga com a parte do imóvel usucapida. A usucapião decretada não configura o pagamento da dívida, mas a prescrição aquisitiva como um instituto independente. A dívida de alimentos poderia continuar a ser executada. Entretanto, nada obstaria a que um acordo neste sentido fosse homologado pelo Juízo. O devedor apresentaria sua concordância com a usucapião do imóvel comum mediante a quitação da dívida de alimentos e o guardião dos filhos menores justificaria a aquisição de parte do imóvel como ressarcimento ao que já gastou suprindo a pensão dos filhos sem ajuda do outro genitor, como acontece frequentemente nas execuções alimentícias.
Indaga-se quanto à hipótese de que aquele que saiu de casa pague a pensão alimentícia por algum tempo e depois deixe de pagar durante dois anos. Isso caracterizaria abandono de lar posteriormente à saída de casa e daria ensejo à usucapião? A questão é controvertida, pois poderia caracterizar uma mera inadimplência de cumprimento da pensão, mas também poderia trazer graves consequências ao que ficou morando no imóvel que se vendo sem pagamento da pensão dos filhos ou própria, durante dois anos, ainda estaria sem possibilidade de alienar o imóvel comum para poder resolver sua situação financeira. Com base nessa perspectiva o prazo para a prescrição aquisitiva poderá ser contado mesmo em período posterior à saída do lar conjugal onde o abandono do lar seria compreendido como o abandono da assistência à família, especialmente os filhos.
Também não se pode interromper a contagem do prazo de dois anos pelo simples reaparecimento do ex-cônjuge ou ex-companheiro. O abandono é o não cumprimento de suas obrigações e não a presença física tão-somente. Para interrupção do prazo deve aquele que abandonou voltar a cumprir suas obrigações ou ingressar com a ação própria para partilhar os bens comuns e liberar o imóvel.

4- Ausência

No caso de ausência ou morte presumida a situação é diferente. Esta dá ensejo à sucessão provisória após decorrido um ano da arrecadação dos bens do ausente, em se passando três anos (art.26 CC) acrescido de 180 dias após publicação da sentença. Trata-se de proteção legal aos herdeiros de um modo geral. O prazo é maior, pois o propósito do legislador é outro e há possibilidade de partilha de todos os bens deixados pelo ausente. Ainda haveria o tempo de duração do processo de inventário que seria longo em razão da aplicação das mesmas regras da herança jacente com expedição de editais e aguardando-se um ano. Difere da usucapião entre ex-casal que visa exclusivamente o direito à moradia e um único bem imóvel. Esse mais voltado ao direito de família e aquele ao direito sucessório. Por isso, preenchidos os requisitos da usucapião entre ex-casal não se poderá exigir o trâmite da declaração de ausência devendo ser aplicada a lei nova para garantir o direito sobre o imóvel já ocupado.

5-Crítica à eticidade da lei - Suspensão de prazo prescricional

O legislador de forma equivocada ressuscitou uma discussão que não mais tem cabimento no século XXI. Culpar um dos cônjuges pela tentativa de manter sua autonomia pessoal e de sua vida. E a conseqüência será a perda da sua parte da propriedade de um imóvel que possivelmente fez sacrifícios para adquirir apostando na sua felicidade ao lado do cônjuge ou companheiro. Porém, cabe aos juízes conferir uma interpretação em consonância com o tempo em que vivemos.
Observe-se que o tempo de 2 anos é curto em meio às dificuldades próprias de uma separação e suas consequências com relação à questão financeira e filhos. A instabilidade emocional tende a ser grande e não foi por acaso que o legislador previa a separação de fato por dois anos para o divórcio direto. É um tempo comum e esperado para que a nova situação de vida se assente, inclusive em termos psicológicos. Todavia, observando-se pelo lado daquele que ficou no imóvel cuidando dos filhos com o outro genitor tendo abandonado o cuidado da família, aguardar dois anos para somente aí poder desembaraçar o imóvel não seria pouco tempo. Até porque há o tempo de duração do processo para que a titularidade possa ser transferida e só depois da sentença com trânsito em julgado terá a plena disponibilidade sobre o imóvel o que pode levar pelo menos mais um ou dois anos.
A par do evidente retrocesso que seria trazer à discussão o abandono de lar e a culpa, temos alguns aspectos que devem ser analisados. A usucapião é uma forma de prescrição aquisitiva e, sendo assim, as causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, também são aplicáveis a este instituto. Há previsão legal nesse sentido especificamente na seção do código que trata da usucapião (art.1244).
Uma das determinações do Código Civil, em sua parte geral, é que não corre a prescrição entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal (Art. 197, I). O intuito do legislador ao suspender o curso da prescrição entre os cônjuges tem relação com a preservação da boa fé nos relacionamentos conjugais. Nos termos do art.1571 do CC, a sociedade conjugal termina pela morte de um dos cônjuges; pela nulidade ou anulação do casamento; pela separação judicial; pelo divórcio. O abandono do lar não está previsto como forma de término da sociedade conjugal, portanto, permaneceria esta e, por consequência, não poderia correr a prescrição, nem mesmo a prescrição aquisitiva, a usucapião enquanto não decretado o divórcio.
Outro entendimento, apresentado pelo Desembargador Claudio Brandão, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em palestra proferida na EMERJ em outubro de 2011, é no sentido de se interpretar a suspensão do curso da prescrição enquanto não ocorrer a separação de fato. Assim, a prescrição somente não correria na constância da relação (e não da sociedade) conjugal e após a separação de fato poderia ser iniciada a contagem do prazo prescricional. Essa interpretação evita fulminar a lei na sua aplicabilidade, pois já nasceria com sérios problemas para a contagem do prazo prescricional.
Creio ser razoável a superação do primeiro entendimento apresentado para que se passe a compreender que, rompido o convívio entre cônjuges ou companheiros, mesmo sem haver divórcio ou declaração documental do término de união estável, haveria possibilidade de contagem de prazo prescricional. A prescrição somente não correria enquanto houvesse o relacionamento conjugal e após a separação de fato poderia ser iniciada a contagem. Entendendo dessa forma, atende-se ao propósito normativo de preservação da confiança na relação conjugal enquanto a mesma durar. Terminada esta, mesmo que somente no aspecto fático, desnecessário tal cuidado.

6-Contagem do prazo

Somente deverá ser iniciada a contagem dos dois anos presentes as características legais exigidas a partir da vigência da lei para que nenhuma parte tenha a surpresa de que, na data em que a lei entrou em vigor, já tenha decorrido o prazo da usucapião e, por consequência, perca parte da propriedade de seu imóvel. Isso ocorre porque a regra dos efeitos da lei no tempo é a da irretroatividade, respeitando-se o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. A teoria subjetivista de Savigny foi adotada para que a lei nova não viole direitos precedentemente adquiridos. Somente quando tais direitos não sejam ofendidos a lei nova pode ser aplicada, quer se trate de fatos ou relações jurídicas novas ou da conseqüência dos anteriores.
A lei só retroage em situações específicas de acordo com o interesse social. As leis que regulamentam os direitos das coisas são aplicadas aos fatos futuros para que não seja gerada insegurança jurídica. Diante disso somente poderá ser iniciada a contagem do prazo da usucapião entre ex-cônjuges ou ex-companheiros a partir da vigência da lei.

7-Regime de bens – propriedade e posse 

Questiona-se a relevância do regime de bens estabelecido entre os cônjuges para impedir a aplicação dessa forma de usucapião. Qualquer dos regimes estipulado tem suas consequências especialmente para partilha de bens, mas deve-se ponderar sua atuação para impedir a utilização desse novo instituto.
No casamento sob o regime da comunhão parcial e na união estável à qual se aplicam as mesmas regras da comunhão parcial, não há dúvidas, pois os bens adquiridos onerosamente após a comunhão de vida passam a pertencer a ambos em partes iguais. As questões surgem no regime de separação de bens.
Se o regime for o da separação total de bens por convenção de ambos, embora não passem a ter como comuns todos os bens adquiridos individualmente poderão adquirir conjuntamente um bem que poderá ser objeto da usucapião, pois atenderá o requisito de propriedade comum. Se o bem for adquirido, mas apenas por um deles durante a união estável ou casamento e utilizado como moradia do casal, deverá incidir o prazo da usucapião entre ex-casal. A controvérsia se instala pelo fato do artigo mencionar propriedade e poderia ser exigido prazo superior previsto no art.1240, cinco anos.
Não se justifica a aplicação de prazo maior em razão do princípio constitucional da isonomia. A proposta legislativa é proteger a família facilitando o acesso ao bem moradia. O regime de bens não deve ser utilizado para fazer diferença entre famílias. Exigir o prazo maior de cinco anos na forma da usucapião especial por não haver co-propriedade geraria discriminação injustificada entre os casais. Se ficou caracterizado o abandono de lar por dois anos, aquele que permaneceu no lar deve ter assegurado o seu direito à prescrição aquisitiva com mais razão do que se tivesse direito à meação do imóvel por força do regime de bens e no mesmo prazo próprio para ex-casal. O art.1240-A foi redigido para ex-casal. O art. 1240 se aplica aos demais, que não formaram uma família comum.
Mesmo no regime da separação obrigatória, instituto que já deveria ter sido expurgado de nossa legislação, se o imóvel em que o casal tenha vivido pertença ao cônjuge ou companheiro que abandonou o lar é cabível essa aplicação. Esse regime é temperado pela Súmula 377 do STF, com a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na constância da união, sendo presumido o esforço comum, o que equivale à aplicação do regime da comunhão parcial. A possibilidade de se criar uma situação para alterar as vedações legais próprias de determinados regimes de bens não é empecilho para aplicação da usucapião entre ex-casal cabendo ao juiz analisar no caso concreto quando se tratar de algum tipo de simulação ou fraude à lei. Não há mudança de regime de bens, mas aplicação de instituto do direito das coisas com repercussão imediata na família e nos seus direitos e o interessado terá sempre o prazo de dois anos para interromper o curso da prescrição.

8-Localização do imóvel – área urbana e rural

No tocante à aplicação exclusiva ao imóvel urbano há notória discriminação com aqueles que vivem em área rural. Em um país com a dimensão do nosso as questões familiares nas áreas rurais são muitas. Não faz sentido aplicar-se instituto dessa natureza apenas na cidade e vedar sua aplicação em área rural. Deve ser estendido às áreas rurais onde muitas situações de abandono geram sérios problemas para administração do bem comum e o cultivo de terra em agricultura familiar, podendo ser aproveitado o disposto no art.1239 com o prazo reduzido da usucapião entre ex-casal. A discriminação legal não se sustenta diante da Constituição e da necessidade de se conceder a mesma proteção a qualquer casal seja na cidade ou no campo.

9-Bens móveis

O prazo de dois anos é inferior ao prazo da usucapião de bem móvel que é de três anos quando há justo título e boa fé (art.1260 CC). A diferença traria a indagação sobre a aplicação da usucapião entre ex-casal incluindo os bens móveis que guarnecem o lar conjugal, bem como as pertenças (art.93 CC).
  Para responder a essa indagação a análise deve ser feita a partir do escopo do legislador que é o da proteção ao ex-cônjuge ou ex-companheiro que ficou residindo no imóvel e foi deixado em desamparo pelo abandono. Caberia a aplicação extensiva a todos os bens móveis que guarnecem o lar conjugal, pois foge ao bom senso reduzir o prazo para usucapião de bem imóvel, em regra de maior valor, sem que ocorra o mesmo com os bens móveis, bem como amparar no tocante a um dos aspectos e deixar sem amparo outro bem também de relevância social.

10-Competência 

Discute-se sobre a competência para processamento e julgamento destes feitos, se de Vara Cível ou Vara de Família. O instituto tem fundamentação nas relações familiares. A competência de Vara de Família é prevista no estado do Rio de Janeiro como sendo aquele que processa e julga, entre outros, os feitos relativos às ações fundadas em direitos e deveres dos cônjuges, um para com o outro (art.85, I, ‘a’ do CODJERJ) e acumulação com pedido de caráter patrimonial não altera a competência estabelecida neste artigo (§ 1º). Também correm em Vara de Família as ações decorrentes de união estável e sociedade de fato entre homem e mulher, como entidade familiar (art. 85, I, ‘g’ do CODJERJ).
Certo que instituto do direito das coisas é próprio da competência da Vara Cível, que julga ações de usucapião, não ressalvada expressamente como competência privativa de outros juízos (exigência do art.84 do CODJERJ). Ao inovar com esse instituto conferindo uma nova forma de usucapião com fundamento no direito de família percebe-se a acumulação de pedido de caráter patrimonial decorrente de direitos e deveres dos cônjuges ou companheiros. Portanto, a usucapião fundada em relação de conjugalidade ou companheirismo deve ser julgada e processada em Vara de Família.
A par da análise do Código de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro, os argumentos a seguir podem fundamentar a competência da Vara de Família nos diversos estados.
A especialização existe para dar maior profundidade no conhecimento de casos peculiares e as relações entre cônjuges ou companheiros tem suas peculiaridades bem conhecidas daqueles que atuam nestas Varas. Os negócios jurídicos entre familiares possuem repercussão emocional e permitem outro tipo de atuação não comum às Varas Cíveis, inclusive com a realização de acordos que levam em consideração a abordagem psicológica e social das quais são dotadas as Varas de Família de sua equipe técnica. Além disso, certamente estarão em trâmite na Vara de Família outros feitos entre as mesmas partes que poderão de uma só abordagem ser resolvidos junto à usucapião que possivelmente será matéria alegada como defesa em futuras ações de partilha de bens.
A solução mais indicada deverá ser aquela existente nas Varas de Família. É por isso que temos a especialização da justiça. O foco do juízo de família tem algumas peculiaridades diferentes do juízo cível. A partilha do imóvel comum, a doação da parte de um dos cônjuges ou de ambos para os filhos, o uso da totalidade do imóvel por determinado período até que os filhos cresçam, enfim, diversas são as soluções que sempre se apresentaram nas Varas de Família.
Há preocupação do legislador com a situação social especialmente da mulher que normalmente permanece cuidando dos filhos após a separação, tanto que no art. 35 da lei nº11977 prevê que os contratos e registros efetivados no âmbito do Programa serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher, o que é perfeitamente justificado na dinâmica social atual, conferindo proteção ao gênero e à prole (princípio do melhor interesse da criança). Inúmeras vezes o marido ou companheiro deixa o lar conjugal e desaparece. A mulher fica responsabilizada sozinha pelos filhos e sem regularização do imóvel. Não pode vender ou transferir o imóvel para os filhos e sequer recebe ajuda financeira para conservação do bem. Ciente dessa realidade o legislador procurou dar solução prática ao problema.
Contudo, quando se tratar de bem adquirido na forma da lei do Programa, também prevê, no art. 6º § 5º  da mencionada lei, que serão consideradas nulas as cessões de direitos, promessas de cessões de direitos ou procurações que tenham por objeto a compra e venda ou promessa de compra e venda ou a cessão de imóveis adquiridos sob as regras do Programa e que estejam em desacordo com o inciso II do § 4o onde não se admite transferência inter vivos de imóveis sem a respectiva quitação.  Isso significa que muitas vezes a própria partilha de bens ficará inviável pela ausência de quitação. O casal deverá aguardar a quitação para poder alienar o imóvel. Na prática deverá um dos cônjuges permanecer no imóvel com a prole comum até que possa ser quitado e vendido 
Repita-se que a nova previsão de usucapião não está restrita aos bens relativos ao Programa de habitação do governo, mas a qualquer imóvel destinado à moradia do casal que preencha os requisitos exigidos.

11- Processamento

Certamente não se deve exigir todo o cumprimento do rito previsto para usucapião no CPC (art.941 e ss) próprio de outras espécies de usucapião. A lei nova não explicita o rito a ser seguido e há permissivo legal para ser adotado o procedimento ordinário (art.271 do CPC).
Não há relevância para o julgamento a juntada de planta do imóvel e a citação dos confinantes ou de eventuais interessados. Também não há necessidade de manifestação da Fazenda Pública da União, Estado e Municípios.
A informação sobre a metragem do imóvel é relevante, porém se ocorrer no caso concreto medida um pouco superior à estipulada na lei, como por exemplo, uma casa de 250m2 e um quintal de mais 50m2, o Juiz poderá analisar sobre a viabilidade da concessão da usucapião de área superior aos 250 m2 podendo o ex-cônjuge ou ex-companheiro pagar o valor correspondente à diferença ou o excesso voltar para a partilha comum ou, ainda, ser incorporada em sua totalidade em área pouco superior à fixada por lei, o que soa plausível.
Com relação à citação deverá ser pessoal buscando-se através de ofícios a localização do endereço do réu. Contudo, não há necessidade de uma busca incansável oficiando-se para todos os órgãos possíveis. A afirmação do autor de que o réu se encontra em local incerto e não sabido (art.232, II do CPC) e a busca junto a pelo menos um órgão, como a Receita Federal (embora sujeito ao réu não ter atualizado seu endereço), confere legitimidade à citação editalícia. A juntada dos documentos que demonstram esse desconhecimento da localização do réu em outros processos (p.ex. incessantes tentativas de localização nas ações de execução de alimentos) confere suporte para que seja feita de forma ágil a citação por edital. 

12-Conclusão

Podem ser firmados os entendimentos como a seguir.
A partir do rompimento da relação conjugal pelo abandono de lar poderá começar a correr a contagem do prazo de 2 anos para a usucapião; o animus domini não poderá ser exigido sendo admitida a usucapião excepcionalmente neste caso de posse direta e indireta.
 A lei nova somente poderá ser aplicada e o prazo começará a ser contado a partir da publicação e sua vigência, pois os possíveis envolvidos não podem ser surpreendidos com a perda da propriedade sem o conhecimento prévio da existência da norma legal.
O abandono do lar não pode ser interpretado conforme a lei que o criou no passado. Deve ser interpretado no sentido de deixar a família ao desamparo podendo ser utilizado para conferir maior segurança àquele que ficou responsável pela prole e, por consequência, conferindo-lhe mobilidade para o caso de necessitar vender o imóvel comum, mesmo não havendo filhos.
Não pode ser caracterizado o abandono do lar se a mulher comprovar que foi expulsa de casa mediante ato de violência doméstica independente de propositura de ação no Juizado de Violência Doméstico podendo comprovar por outras formas.
A competência para julgamento é de Vara de Família em razão da questão de fundo nesta forma diferenciada de usucapião que é a questão familiar. 
O tempo estipulado pela lei mais o tempo de duração do processo poderão fazer com que o prazo de dois anos praticamente dobre o que é prejudicial para a parte que precisa vender o imóvel em que vive em razão de dificuldades financeiras devendo ser facilitado o acesso e o trâmite respeitando-se o contraditório e ampla defesa. O processamento deverá ser sob o rito ordinário e poderá ser alegado em defesa na ação de partilha de bens na Vara de Família. 
O regime de bens, qualquer que seja, não pode impedir a aplicação do instituto devendo ser analisado casuisticamente qualquer possibilidade de simulação ou fraude. Tanto a propriedade como a posse de bem utilizado para moradia do casal deverão ter como prazo para usucapião, os mesmos dois anos, desde que caracterizado o abandono a fim de não afrontar o princípio da isonomia.
Os ex-casais que vivam em área rural poderão utilizar do instituto para evitar discriminação infundada.
Como já salientado, o prazo somente será contado a partir da vigência da lei iniciando-se com a separação de fato. Poderá ser iniciada sua contagem posterior à separação de fato caso o abandono da família se dê posteriormente como deixando de pagar a pensão alimentícia e o bem imóvel não ter sido partilhado.
Mesmo para aqueles que entendem que o legislador agiu de forma intervencionista na diferenciação de tratamento legal em face dos casais que construíram seu patrimônio comum, habemus lege! O que se propõe é a interpretação e aplicação da nova lei de forma a preservar o momento vivido pelo casal que se separa sem descuidar da realidade social que por vezes deixa um dos cônjuges, em regra a mulher, desamparado e com a obrigação de cuidar dos filhos e sem poder dispor de seu imóvel na sua totalidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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