quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Estatuto do idoso e o transporte público: aplicação da lei e o princípio da dignidade humana

15/09/2009 | Autor: Stênio de Freitas Barretto

1. INTRODUÇÃO

No presente artigo, pretendemos discutir e refletir a real condição do idoso e a aplicabilidade do Estatuto do Idoso que preconizou a reserva de dez por cento dos assentos nos transporte público e reserva habitacional. A reserva é uma solução que se apresenta viável e efetiva para proporcionar ao idoso dignidade para locomover-se ou transformou em "martírio" a locomoção dos mesmos ao utilizar desse transporte? Essa discussão não pretende esgotar a temática, dada a relevância e complexidade da matéria, mas pretende abrir uma nova visão sobre o tema e despertar a criação de novas soluções e alternativas aplicáveis a este problema, quem sabe reformulando o preceito normativo visando sua adequação à realidade atual.


2. DIGNIDADE E O COTIDIANO DO IDOSO NO TRANSPORTE PÚBLICO


Todos os dias, ao entrarmos no ônibus pela manhã para ir a um lugar qualquer nos deparamos com uma situação no mínimo curiosa: ao tentar chegar à "roleta' nos vemos em grande dificuldade para realizar esta simples tarefa.


O leitor pode estar pensando: "mas esta colocação é insensível! Devem estar falando dos idosos que estão ali na parte dianteira dos ônibus." E realmente estamos.


Paremos para pensar nesta situação "bizarra", principalmente levando em consideração o fato de que, após a "roleta" há vários lugares que se encontram vagos. Após passarmos voltemos mais uma vez nosso olhar aos cerca de dez ou doze senhores e senhoras que se "amontoam" de forma desumana na dianteira do coletivo, enquanto nós, confortavelmente, ocuparemos ou alguém ocupará sozinho um banco de dois lugares.


A preocupação com esta camada da população não é de poucos brasileiros, esta também é uma preocupação, em tese, do Estado:

"Rapidamente, deixamos de ser um "país de jovens" e o envelhecimento tornou-se questão fundamental para as políticas públicas. Os brasileiros com mais de 60 anos representam 8,6% da população. Esta proporção chegará a 14% em 2025 (32 milhões de idosos)". (2) (COSTA,2003)



Na realidade o que visualizamos é um gritante descaso com as necessidades reais dos nossos "protegidos".


De semelhante maneira, devemos considerar também como pouco a reserva de destinação das construções habitacionais aos idosos, de apenas 3% (art. 38, I, da referida Lei), visto que a construção de tais unidades no Brasil está em déficit para a população em geral em sete milhões e duzentas mil unidades(3) e que por sua vez, também é desrespeitada, observando que os juros e as exigências para que estes adquiram financiamento junto aos bancos oficiais são maiores que de um adulto em idade média (30 a 40 anos).


Que dizer então da gratuidade no transporte público e acesso a órgãos, bancos, casas de espetáculos, museus e outras formas de acesso à cultura e entretenimento?


Onde estará o respeito real previsto na Lei em questão?


2.1. Breves considerações sobre dignidade



A dignidade é o termo utilizado para definir a ação de cada um de nós a fim de promover de maneira justa e honesta o respeito ético aos direitos de outros indivíduos. Segundo Leciona a Ministra do STF (4), Carmem Antunes Rocha:

"Dignidade é o pressuposto da idéia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal. (5) (ROCHA,1999,p.26)



Compreendemos então que o reconhecimento e o respeito devem pré-existir e estão fundamentados em nosso Ordenamento Jurídico quanto bem jurídico a ser praticado e defendido pelo Estado e seus cidadãos. "Os direitos humanos são a expressão direta da dignidade da pessoa humana, a obrigação dos Estados de assegurarem o respeito que decorre do próprio reconhecimento dessa dignidade" (6)



Em fundamentação filosófica Metafísica Kant afirma:

"No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade" (7)(KANT,1991,p.68)




Desta maneira, a filosofia kantiana nos revela que não há valoração para os bens que nascem com o ser humano e estes devem ser respeitados acima de qualquer valor ou direito.


2.2. Gratuidade no transporte. Direito ou problema?



"Art. 39. Aos maiores de 65 (sessenta e cinco) anos fica assegurada a gratuidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semi-urbanos, exceto nos serviços seletivos e especiais, quando prestados paralelamente aos serviços regulares.
§ 1.º Para ter acesso à gratuidade, basta que o idoso apresente qualquer documento pessoal que faça prova de sua idade.

§ 2.º Nos veículos de transporte coletivo de que trata este artigo, serão reservados 10% (dez por cento) dos assentos para os idosos, devidamente identificados com a placa de reservado preferencialmente para idosos." (Lei n 10.741, de 2003)



Conseguimos lembrar o tempo em que jovens cediam voluntariosamente seus assentos a um idoso que adentrava no ônibus caminhando com dificuldade? Este tempo acabou. Hoje, quando entramos nos coletivos encontramos cadeiras de cor vermelha ou amarelas que alguns cidadãos, que não respeitam a reserva (8), teimam em utilizar mesmo a despeito da necessidade e presença dos destinatários das mesmas. Quando não, estes lugares estão sendo usados por outros idosos, grávidas ou pessoas com mobilidade reduzida e muitos dos idosos ficam em pé na dianteira dos coletivos.


Se fizéssemos hoje uma pesquisa sobre a satisfação dos idosos, que diretamente foram "beneficiados" pelo texto normativo, descobriríamos uma insatisfação evidente. Ao limitar tais assentos nos coletivos à parte dianteira criou-se uma "gaiola" onde os idosos são obrigados a se apertar. Cabe ainda analisar que o texto normativo não diz o local em que deve ser feita a reserva, diz apenas que 10% precisam estar identificados, porém é reconhecida a dificuldade da escolha deste local, em sua grande maioria é a dianteira dos ônibus.


Se o número de idosos vem aumentando gradativamente, segundo o IBGE (9) em sua projeção do Censo de 2004 em referência em projeções de 1980 a 2050 (10), em 1980 tínhamos 7.370.869 de idosos e em 2015 teremos em projeção 23.230.287 destes cidadãos com 60 anos ou mais de idade, em 2025 serão 32 milhões e sendo assim, observando o previsto crescimento desta camada da população, tais medidas ao invés de beneficiar, logicamente iriam criar este tipo de problema.

Ao "segregar" os idosos, criou-se um meio de distanciar os mesmos dos outros que partilham com eles o transporte público, e a dificuldade gerada pela aglomeração nas dianteiras dos coletivos gera desconforto e constrangimentos para eles e para os demais passageiros, resultando às vezes, discussões desnecessárias.

O conforto e a dignidade de todos, não só dos idosos, foi ofendido, constrangendo-os a estarem "amontoados" na dianteira quando todos os lugares estão ocupados pelos mesmos e mais idosos embarcam e muitas vezes o restante do coletivo encontra-se vazio, ou, mesmo que não estivesse vazio, certamente algum passageiro lhe cederia o lugar em respeito à sua idade ou condição física, o que por sua vez permite a nós, por livre vontade, o exercício pleno da cidadania, respeito e amor ao próximo.



Porque não se demarcam lugares aos idosos dentro do coletivo sem discriminar espaço específico? A Lei foi omissa e, portanto incompleta ou ainda, carecemos de regulamentação adequada.


Porque não produzir uma identificação adequada para os idosos a fim de que possam usar de todo o coletivo ultrapassando a roleta, ou de maneira que possam adentrar pelas portas traseiras como o fazem os policiais e outros com direito à gratuidade? Este problema não encontramos no metrô (trem metropolitano) (11) em observação, pois nos vagões não há roleta que dificulte o acesso, e os mesmos vagões dispõem de 10% dos lugares marcados, mas nada que impossibilite, em estando estes lugares já ocupados, que os idosos usem dos demais assentos, pois a dificuldade física não está limitada a esta reserva do espaço.

O acesso à gratuidade poderia e deveria ser mais fácil, visto que estas pessoas possuem respaldo legal para desfrutarem de tratamento digno no transporte público.


2.2.1. Gratuidade e real aplicação do direito



"CAPÍTULO VII - DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE E DO IDOSO

Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

§ 2º - Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos. " (12)



Ouvimos falar pela mídia durante um bom tempo sobre a discussão do direito dos idosos à gratuidade nos transportes públicos intermunicipais e interestaduais (13). Diversos pedidos de liminares e embargos foram impetrados nos mais diversos tribunais, chegando às maiores cortes do país. Mas, quais as reais implicações das decisões tomadas para os idosos?


O Decreto Presidencial Nº 5.934, de 18 de outubro de 2006, buscou regulamentar o disposto no art. 40 da Lei no 10.741, de 1o de outubro de 2003 (o já referido Estatuto do Idoso), no entanto o que temos vislumbrado são constantes "manobras" das empresas de transporte de passageiros para dificultar o acesso dos idosos aos seus direitos.


A lei estabelece que é dever da ANTT (14) e da ANTAQ (15) a atribuição de criação de normas de detalhamento do cumprimento do disposto nela (art. 1º, Parágrafo único) e à estas Agências também cabe o dever de fiscalização.

Não havendo mais vagas de assentos gratuitos os idosos têm direito ao desconto de 50% sobre o valor da passagem normal (art. 4º do Decreto 5.934). As empresas tem se valido deste artigo para não ofertar aos usuários idosos a gratuidade e assim, muitas vezes, relatam ter ocorrido reserva de assentos ou que os mesmos já se encontram ocupados. Desta forma não "perdem" todo dinheiro que poderiam ganhar com as vendas das passagens. Esta tem sido a grande reclamação das entidades que defendem os interesses dos idosos.

O quadro atual, independente das ações fiscalizadoras das Agências, é de completo descaso e desrespeito aos direitos dos idosos. São constantes as situações de exposição vergonhosa e desumana em que são impostos nossos sexagenários nas constantes idas e vindas aos guichês das transportadoras.

A maioria das dificuldades relatadas diz respeito a trechos do próprio decreto e do Estatuto do Idoso. As maiorias das queixas se referem ao uso do argumento de falha na comprovação de identidade por parte do idoso e alegações de que os idosos não respeitam os prazos previstos no art. 4º, Parágrafo único, Incisos I e II (distancia de 500 km exige 6 horas de antecedência e acima desta quilometragem 12 horas de antecedência para a aquisição do bilhete).

Conviver com mais este impedimento social tem sido amargurante para nossa população de idosos. Antes de tudo, são eles seres humanos além de contribuintes e cidadãos.

A intenção das empresas de transporte público é o lucro e tão somente esta tem sido a sua participação na vida da sociedade no que podemos relacionar aos idosos.

3. CONCLUSÃO


A despeito de toda legislação promulgadas pelos poderes competentes o que se tem presenciado é que existe em nosso país um crescente e continuado desrespeito ao princípio da dignidade humana e às leis conseqüentemente.

Os idosos compreendem a uma população importante economicamente, mas principalmente correspondem a uma camada da sociedade que oferece benefícios sociais mais relevantes que o econômico. Estes idosos são os que oferecem segurança, organização e respeito familiar, promovem a perpetuação das tradições familiares e respeito às organizações e à própria família, o que resulta em uma sociedade mais humana capaz de gerar melhores cidadãos.

Hoje, precisamos de efetivo cumprimento das leis para que estes cidadãos possam desfrutar de uma vida plena e digna.

O atual modelo de transporte encontra-se defasado e necessita de adequações constantes para que o crescimento desta população possa refletir também em crescimento na oferta de produtos e serviços públicos de transporte e não somente estes, capazes de lhes oferecer efetivamente esta dignidade.

Uma política de verdade para a população idosa é de extrema necessidade e importância para que não deixemos para o futuro as ações que necessitamos realizar agora, sob pena de deixarmos padecer no abandono nossos valiosos idosos e com eles nosso passado.


4. REFERÊNCIAS



BRASIL. Ministério da Saúde. Estatuto do Idoso / Ministério da Saúde. - 1. ed., 2.ª reimpr. - Brasília: Ministério da Saúde, 2003.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição [da] Republica Federativa do Brasil, inVade Mecum Compacto. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

LENOIR, Noelle et MATHIEU, Bertrand, Les normes internationales de La bioéthique, PUF, Paris, 1998. In Reflexão Ética sobre a Dignidade Humana. Documento de Trabalho do CNEC (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida). 26/CNEC/99.

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, [1785], 1991, ed.70.

IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Gerência de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica. Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade para o Período 1980-2050 Revisão 2008.
REVISTA INTERESSE PÚBLICO. "O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Exclusão Social". Revista Interesse Público. Ano 1, n. 4, outubro/dezembro de 1999. São Paulo: Notadez, pp. 23 a 49.



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(3) Dados do IBGE divulgados na mídia e pela Casa Civil quando da divulgação da construção de moradias em 2009.

(4) Supremo Tribunal Federal.

(8) Entenda-se reserva como a destinação dos lugares aos idosos em preferência aos outros passageiros. Assim, os lugares quando não utilizados por estes idosos podem ser ocupados por qualquer outro passageiro, que em adentrando um destes destinatários deverá cortesmente ceder o lugar a este.

(9) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

(10) Fonte: IBGE/Diretoria de Pesquisas. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Gerência de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica. Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade para o Período 1980-2050 - Revisão 2008.

(11) Após devidamente identificados na estação os idosos podem adentrar nos vagões onde encontram os assentos demarcados, podendo, no entanto, assentar-se em qualquer lugar, independente dos lugares reservados estarem ocupados ou não. Na grande maioria das vezes os usuários cedem os lugares aos idosos independente de estarem assentados em lugares não demarcados para o uso destes.

(12) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 230, caput e §2º.

(13) Transporte Intermunicipal refere-se às viagens a serem realizadas de um município ao outro e interestaduais de um estado da Federação ao outro.

(14) Agência Nacional de Transportes Terrestres.

(15) Agência Nacional de Transportes Aquaviários.

3 comentários:

Edna Vieira disse...

Gostaria de saber se é permitido por lei a empresa de onibus limitar 03 cadeias antes da roleta para os passageiros de gratuidade, sendo uma cadeira ja colada ao vidro dianteiro sem segurança para quem faz uso.
Se a lei permite aos passageiros de gratuidade um cartão, por que eles não podem passar pela roleta? São solicitados a descer do carro caso as 03 cadeiras já estejam completas.
Esse procedimento está correto?

Stênio Barretto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Stênio Barretto disse...

Agradeço pela publicação e divulgação de meu artigo. Espero que ele possa instruir e ajudar muitas pessoas.
Obrigado e um abraço!