quinta-feira, 31 de julho de 2014

Aplicação na Lei no Tempo


Quando uma lei entra em vigor, revogando ou modificando outra, sua aplicação é para o presente e para o futuro, não sendo compreensível que voltasse ao tempo pretérito, ordenado o comportamento para o decorrido. Assim, afirma-se que a lei tem efeito, além de geral, imediato.    O Decreto-Lei Nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, alterado pela Lei nº 12376/2010, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, trata do tema. Estabelece no seu art. 6º “A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.

Quando a lei antiga é revogada e substituída pelas novas disposições, encontram-se direitos subjetivos ou situações legais geradas por fatos ocorridos antes do império da lei modificadora, que não chegaram a produzir todos os seus efeitos. Dois princípios se acham em conflito: a lei do progresso social – atendendo ao reclamo do progresso jurídico e o Princípio da segurança e da estabilidade social – exige o respeito do legislador pelas relações jurídicas criadas.

O conflito está entre permitir que as relações jurídicas se desenvolvam sem serem molestadas pela lei nova - o que é negar o sentido de perfeição que as exigências sociais pretendem imprimir ao ordenamento jurídico – ou aceitar que a nova lei faça tabula rasa da lei anterior é ofender a estabilidade da vida civil e instituir regime de insegurança e instabilidade social.

Um conceito fundamental estruturado na essência do próprio ordenamento jurídico é o Princípio da irretroatividade das leis. Apenas no plano jusfilosófico é possível a generalização deste princípio. Somente fazendo a abstração do conteúdo positivo é que se pode proclamar este efeito.

Somente o legislador pode atribuir efeito retroativo às disposições novas. O direito brasileiro tem seguido uma só orientação desde a Constituição do Império de 1824 até a Constituição atual, exceto a Carta de 1937, todas ditando a regra de irretroatividade ao próprio legislador.

A Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro tomou rumo subjetivista inicialmente, porém quando alterada pelo Decreto-Lei n. 4657/42 virou para o campo objetivista, prescrevendo o art.6º que a lei em vigor terá efeito imediato e geral e não atingirá as situações jurídicas definitivamente constituídas da relação jurídica, porém continuou sobre princípios já assentados e noções subjetivas de direito adquirido e expectativa de direito e novamente houve alteração, pela Lei n. 3238/57, ressuscitando as definições antigas do respeito ao direito adquirido. Esta redação foi mantida pela alteração legislativa de 2010.

Para a Teoria Subjetivista, de Savigny, a lei nova não pode violar direitos precedentemente adquiridos, onde não se ofendam tais direitos a lei deve ser aplicada, quer se trate de fatos ou relações jurídicas novas, quer da consequência dos anteriores.

ATeoria Objetivista, de Roubier, preconiza que os efeitos futuros dos fatos passados se regem pela lei nova, o que não significa aplicação retroativa.

Passemos aos conceitos legais de ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada.

O ato jurídico perfeito é aquele já consumado, plenamente constituído, cujos requisitos se cumpriram na pendência da lei sob cujo império se realizou.

O direito adquirido é aquele que abrange os direitos que o seu titular ou alguém por ele possa exercer, como aquele cujo começo de exercício tenha termo prefixado ou condição pré- inalterável ao arbítrio de outrem. São os direitos definitivamente incorporados ao patrimônio do seu titular. Os já realizados ou os que simplesmente dependem de um prazo para seu exercício, ou ainda os subordinados a uma condição inalterável ao arbítrio de outrem. A lei nova não pode atingi-los sem retroatividade.

A coisa julgada ocorre quando encerrada uma questão por sentença de que não caiba mais recurso, tornando-se inatingível por uma lei posterior, material ou formal.

A partir dos conceitos e considerações acima podem ser feitas projeções para a aplicação da lei no tempo, nos diversos campos do direito civil.

A lei que cria ou extingue uma instituição tem aplicação imediata, da mesma forma que a modificadora das meras faculdades legais. Um exemplo é a extinção do instituto da enfiteuse pelo Código Civil de 2002, art. 2038.

A lei sobre capacidades das pessoas alcança todos os por ela abrangidos, como quando a maioridade civil foi reduzida de 21 anos para 18 anos. Todos os que possuíam 18 anos adquiriram imediatamente a maioridade.

A lei que regula a forma e a prova dos atos jurídicos é a do tempo em que se realizam. Se uma lei impõe forma pública para ato que se podia celebrar por escrito particular não atinge os que revestem esta forma, celebrados ao tempo em que a lei o permitia, ainda quando seus efeitos se venham a produzir sob o império da lei nova.

As leis que definem o estado da pessoa aplicam-se imediatamente a todos que se achem nas novas condições previstas. Se uma lei declara dissolúvel o matrimônio, admite como suscetível de dissolução todo casamento mesmo que celebrado ao tempo em que a lei vedara o divórcio.

Os direitos reais são disciplinados pela lei vigente, seja na sua conceituação, seja no seu exercício. A lei que considera indisponíveis determinados bens ou institui condições para alienação abrange a todos os que especifica, mas respeita as alienações efetuadas antes dela.

Os direitos de obrigação regem-se pela lei no tempo em que se constituíram, no que diz respeito à formação do vínculo, seja contratual, seja extracontratual. A lei que regula a formação dos contratos não pode alcançar os que se celebrarem na forma da lei anterior. Se uma lei define a responsabilidade civil, torna obrigado aquele que comete o fato gerador, nos termos da lei que vigorava ao tempo em que ocorreu; mas, se uma lei nova cria a responsabilidade em determinadas condições anteriormente inexistentes, não pode tornar obrigado quem praticou ato não passível de tal consequência segundo a lei do tempo. Os efeitos jurídicos dos contratos regem-se pela lei do tempo em que se celebraram.

Os direitos dos herdeiros são regulados pela lei vigente ao tempo da abertura da sucessão. Se a ordem de vocação é alterada só se aplica às sucessões que se abrirem após sua vigência, mas as já abertas escapam. A capacidade para receber por testamento apura-se pela lei vigente ao tempo da abertura da sucessão, mas para fazer testamento apura-se pela lei do tempo em que foi praticado o ato.

Em linhas gerais são as projeções que podemos apresentar para aplicação da lei no tempo.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Alimentos provisórios são devidos até a sentença que os reduziu ou cassou

Os efeitos de sentença exoneratória de pensão alimentícia não podem retroagir aos alimentos provisórios devidos até a data em que ela foi prolatada. O entendimento foi aplicado pelo ministro Sidnei Beneti, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar recurso especial contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).

Em ação de execução de alimentos, o TJSP exonerou o alimentante do pagamento de alimentos provisórios fixados antes da prolação da sentença que os extinguiu. A alimentanda recorreu da decisão ao STJ.

Efeito ex nunc

Ela sustentou que “a sentença proferida nos autos da ação de alimentos (exoneratória) somente possui efeitos ex nunc, não podendo retroagir aos alimentos provisórios devidos até a sua prolação”.

O ministro Sidnei Beneti, relator, acolheu o argumento. Segundo ele, a decisão do TJSP foi contrária à jurisprudência do STJ de que o valor dos alimentos provisórios é devido desde a data em que foram fixados até aquela em que foi proferida a sentença que os reduziu ou cassou.

“O alimentante está obrigado ao pagamento dos alimentos referentes ao período compreendido entre a concessão liminar e a sentença, sendo direito da alimentanda executar as prestações vencidas e não pagas”, disse Beneti.

Com a decisão, foi determinado o retorno dos autos às instâncias ordinárias para julgamento da ação executiva dos alimentos provisórios.

do site do STJ

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A Primeira Mulher Advogada - As mulheres advogadas: preconceitos e debates.



No início do século XX as mulheres tinham poucos direitos consolidados. A República não havia reformulado questões relativas aos direitos civis, cujo código só em 1917 foi aprovado. Mesmo aquelas que pretendiam estudar, e conseguiam excepcionalmente entrar em alguma faculdade, o faziam sem nenhuma certeza que depois poderiam ter uma vida profissional independente.

 

Myrthes Campos nasceu na cidade de Macaé, Rio de Janeiro, em 1875. Estudou no Liceu de Humanidades de Campos, interessando-se precocemente pelo estudo das leis, mas enfrentado uma negativa da própria família para prosseguir nos estudos, até o nível superior. No século XIX havia uma resistência muito grande em relação às mulheres que pretendessem preterir suas atividades familiares, como mãe ou esposa, para se tornarem profissionais, trabalhando fora dos limites domésticos. No entanto, Myrthes conseguiu bacharelar-se na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, então capital federal, em 1898. A família, de alguma forma, tinha-se convencido da sua demanda.

 

Depois de formada, o problema agravou-se. Teve que enfrentar uma série de entraves que eram comuns em relação às mulheres que tinham o pioneirismo de realizar um curso universitário. Primeiramente seria necessário obter o reconhecimento de seu diploma, e depois dar um passo a mais: legitimar-se profissionalmente, isto é, ser aceita no Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros (IOAB), fato inédito para uma mulher brasileira.

 

O pioneirismo de Myrthes foi acompanhado por algumas mulheres que fizeram estudos universitários, inclusive os cursos de Ciências Jurídicas no Brasil, como foi o caso de Maria Fragoso, Maria Coelho e Delmira Secundina que se formaram em Recife, em 1888, e em 1889, na mesma cidade, Maria Augusta C. Meira Vasconcelos. No entanto, o projeto de Myrthes era mais arrojado, pois ela pretendia trabalhar como advogada, envolvendo-se, portanto, em uma luta mais difícil, sobretudo quanto à resistência inicial para a formalização de seus direitos profissionais. Primeiro trabalhou na Secretaria da Corte de Apelação do Distrito Federal, e posteriormente no Tribunal da Relação do Estado. No IOAB enfrentou as negativas do desembargador José Joaquim Rodrigues, mas não se deixou intimidar pelas recusas iniciais.

 

Por volta de 1905, o IOAB, que desde a sua origem só tinha abrigado bacharéis do sexo masculino, defrontou-se com uma nova realidade social. Era um momento de mudanças mesmo para a sede do Instituto estava se deslocando para um novo prédio. Nas fontes disponíveis, não encontramos a data precisa da transferência do Instituto e da respectiva biblioteca para a ala direita do Silogeu. Tudo leva a crer que tenha se efetivado entre o final de 1905, e o começo de 1906, pois no Relatório do ministério da Justiça relativo àquele exercício, na listagem dos próprios nacionais, consta o registro do Silogeu Brasileiro, como edifício moderno e ocupado.  Por outro lado, revendo a documentação desse período, fica evidente que a plenária do IOAB mostrava-se muito envolvida na discussão de um assunto, bem mais palpitante do que a mudança para a nova sede. Tratava-se de mais uma tentativa de admissão de um bacharel do sexo feminino, a advogada Myrthes Gomes de Campos.

 

Este fato está profundamente relacionado à criação das Faculdades Livres de Direito que favoreceu o acesso de moças aos bancos acadêmicos. No âmbito do Instituto, em 1888, segundo Tânia Rodrigues de Araújo, na obra As mulheres na carreira jurídica, ensaiou-se até um breve debate se a mulher graduada em Direito deveria ou não exercer a magistratura. Contudo, o assunto não foi adiante, ao que parece, devido à forte influência maçônica que dominava a corporação na época.

 

Na verdade, a querela em torno da candidatura da Dra Myrthes ao Instituto já tinha antecedentes, quando em 1899 tinha feito a primeira demanda. Já diplomada em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade Livre de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, na turma de 1898, a jovem requereu ingresso na classe dos sócios estagiários, uma categoria recém criada no grêmio, aberta aos bacharéis que tivessem menos de dois anos de exercício na profissão. Naquela ocasião, a Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência pronunciou-se a favor da candidata, considerando que:

 

(...) não se pode sustentar, contudo, que o casamento e a maternidade constituam a única aspiração da mulher ou que só os cuidados domésticos devem absorver-lhe toda atividade. (...) Não é a lei, é a natureza, que a faz mãe de família.  (...) liberdade de profissão, é, como a igualdade civil da qual promana, um princípio constitucional (...) a mulher casada sofre restrição na sua capacidade jurídica, a mulher livre, não; esta tem a plenitude de todos os direitos que lhe são inerentes, mas a incapacidade da mulher casada não é absoluta, cessa com a autorização marital (...) nos termos do texto do art. 72, § 22 da Constituição o livre exercício de qualquer profissão deve ser entendido no sentido de não constituir nenhuma delas monopólio ou privilégio, e sim carreira livre, acessível a todos, e só dependente de condições necessárias ditadas no interesse da sociedade e por dignidade da própria profissão; (...) o direito de advogar é um direito civil e, portanto ninguém pode ser privado de exercer a advocacia se exibe título de capacidade ou habilitação, sem que a lei tenha expressamente estabelecido as causas de incapacidade, em que se achar compreendido; (...) não há lei que proíba a mulher de exercer a advocacia e que, Importando  essa proibição em uma causa de incapacidade, deve ser declarada por lei (...)

 

O parecer, muito bem fundamentado por sinal, foi impugnado pelo Dr. Carvalho Mourão na plenária do Instituto. De nada adiantaram os esforços de outros sócios como o Barão de Loreto, Baptista Pereira e João Evangelista Sayão Bulhões de Carvalho, membros da Comissão de Justiça, para reverter o quadro. As opiniões se dividiram e a polêmica se instaurou. Melhor dizendo, deixou a sala de sessões do IOAB para continuar nas páginas do Jornal do Commércio, com a publicação de um artigo, assinado por Carvalho Mourão, em que repudiava a opinião dos confrades.

 

No arrazoado, o jurisconsulto, dentre outras alegações, declarava que as leis, (...) segundo o costume e a tradição, não permitiam à mulher exercer a profissão de advogado - ofício que a lei romana classificava de viril. Arrematando a censura, fazia uma advertência aos três integrantes da Comissão de Justiça, por ousarem admitir que até mesmo a mulher casada poderia advogar, quando autorizada pelo marido: (...) sejam coerentes; reclamem a abolição do poder marital (...) E assim teremos uma sociedade sem autoridade, o ideal da anarquia no lar. A tanto chega a virulência orgânica, inata, inata, corrosiva, da opinião dos feministas.

 

As premissas levantadas por Carvalho Mourão acabaram prevalecendo no IOAB e o parecer da Comissão de Justiça foi rejeitado pela assembléia dos sócios, por dezesseis votos contra onze, demonstrando, no entanto, que havia uma divisão significativa, pois a proposta de ingresso de Myrthes perdera por apenas 5 votos.  A Dra. Myrthes Campos, entretanto, mostrava-se disposta a enfrentar os romanistas da corporação. Estabelecida com escritório à rua da Alfândega nº 83, conseguira ser admitida no Tribunal do Júri, tornando-se assim a primeira mulher a exercer a profissão de advogada no Brasil. Também escrevia para jornais de época, e suas participações em defesas chamavam muito público, curioso de assistir ao desempenho da causídica. De qualquer modo, a questão permaneceu latente, sendo retomada com vigor, alguns anos mais tarde, quando a Dra. Myrthes voltou a requerer ingresso na Casa de Montezuma, desta feita candidatando-se ao quadro dos sócios efetivos.

 

Como já mencionamos, a proposta deu entrada em 1905 e, ao invés de ser submetida à apreciação da Comissão de Sindicância, encarregada de analisar os pedidos de admissão de sócios, sorrateiramente foi remetida à Comissão de Justiça, a pretexto de dirimir uma velha dúvida: se a mulher legalmente diplomada pode exercer a advocacia. Os integrantes desta Comissão, por sua vez, protelaram o exame da questão por sucessivas vezes, alegando os mais diversos motivos. A tal ponto, que na sessão de 26 de abril de 1906, o Dr. João Marques solicitou ao presidente do Instituto que intercedesse junto à dita Comissão, nos termos regimentais, a fim de que apresentasse o respectivo parecer.

 

Reascendeu-se a polêmica. Os tradicionais argumentos do Dr. Carvalho Mourão, mais uma vez, foram usados de escudo para aqueles que se opunham à presença feminina na corporação. No fundo, a discussão servia tão somente de pretexto para postergar a decisão sobre o caso, pois era fato que a Dra. Myrthes há muito que militava no Tribunal. Dentre outras vitórias ali obtidas, em 1906, defendera e ganhara uma causa importante, derrotando um promotor considerado invencível. O certo é que os debates alongaram-se por um bom tempo, e uma nova comissão foi constituída para solucionar o problema.

 

Finalmente, após três meses de impasse, a Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência concluiu o óbvio, ou seja, de que (...) Não há lei que proíba a mulher de exercer a advocacia. Mesmo assim, a tese não foi aceita por unanimidade. Ao ter seu nome submetido pela segunda vez à assembléia do IOAB, em 28 de junho de 1906, recebeu aprovação por dezesseis votos contra dez, com voto em separado do Dr. Carlos de Gusmão.

 

O resultado, porém, não encerrava a demanda da Dra Myrthes. Apenas abria caminho para que o seu requerimento de admissão viesse a ser examinado pela Comissão de Sindicância. Mas o jogo prometia novos lances, agora por meio de um indicativo do Dr. Carlos de Gusmão, a respeito da mulher casada advogada. Tentava-se, deste modo, obstruir a pauta das sessões e deixar o caso em suspenso, mais uma vez.

 

Os partidários da presença feminina no Instituto, entretanto, mostraram-se mais diligentes do que supunham os seus adversários. Ou melhor, já conheciam suas estratégias. Osfeministas desencadearam uma verdadeira operação de guerra. Em duas semanas conseguiram obter o parecer favorável da Comissão de Sindicância, arregimentaram forças e submeteram a proposta da advogada à plenária do Instituto na sessão de 12 de julho de 1906. Os esforços foram recompensados. Basta dizer que compareceram àquela sessão trinta e oito sócios, número recorde em relação à freqüência habitual. A assembléia aprovou por vinte e três votos contra quinze, o ingresso da Dra Myrthes Gomes de Campos no quadro efetivo da Casa de Montezuma.

 

A chegada da Dra Myrthes deu ensejo a outros debates que de alguma forma envolviam a questão da mulher na sociedade brasileira.  Temas como divórcio, trabalho feminino, caixas maternidade, trabalho infantil e regularização do trabalho em geral se tornaram práticas cotidianas.

 

Por outro lado, o estabelecimento do Instituto no Silogeu, onde também se localizavam agremiações congêneres, propiciou a abertura de novas frentes de atuação. A proximidade da Academia Nacional de Medicina ensejou a apresentação de um projeto de trabalho conjunto (...) para o exame e estudo dos serviços médicos legais (...). O tema foi considerado relevante, tendo em vista o atraso de tais serviços no Brasil, e constituído um comitê especial encarregado de analisar a viabilidade da proposta.  

 

A idéia da parceria parece ter sido bem recebida entre os discípulos de Hipócrates. O presidente da Academia Nacional de Medicina, Dr. Azevedo Sodré, fez questão de comparecer ao IOAB para assistir a uma sessão ordinária e, aproveitando a ocasião, convidou os advogados a participarem da solenidade de aniversário do tradicional reduto científico. A troca de gentilezas entre os vizinhos do Silogeu prosseguiu, porém, lamentavelmente, na documentação do Instituto não há maiores informações sobre o andamento daquele projeto. Há registro apenas da votação de um volumoso relatório, apresentado pelo sócio Dr. Isaías Guedes de Mello, com o diagnóstico da precária situação dos serviços de medicina legal no país e sugestões para aprimorá-los.

 

Reconhecido pelos órgãos do governo, aplaudido por sua atuação acadêmica, prestigiado pela sociedade carioca e localizado noSilogeu Brasileiro, o Instituto da Ordem dos Advogados não apenas rejuvenesceu, segundo as palavras do Dr. Moitinho Dória, como também readquiriu o seu lado charmoso, por assim dizer. É bem verdade que nos primeiros anos do século XX os associados já não compareciam mais às sessões trajando casaca, camisa de peito duro e gravata plastron, indumentária típica do Segundo Reinado. Em tempos republicanos, adotaram figurinos mais leves e democráticos, como o paletó de casemira clara e o chapéu de palha, embora nas cerimônias oficias continuassem a envergar vestes talares, privilégio concedido por D. Pedro II.

 

Convites para participar de atos cívicos, solenidades públicas, inaugurações, banquetes e outros acontecimentos do gênero faziam parte do cotidiano do grêmio. Convocado pelo presidente Rodrigues Alves, o Instituto nomeou uma comissão de sócios para assistir às festividades do dia 7 de setembro de 1904, quando se inaugurou o eixo principal da nova avenida Central, hoje Rio Branco, símbolo da modernização do país. Aliás, os filiados do IOAB podiam ser vistos com assiduidade nas recepções oficiais da presidência da República. Isto sem falar nos famosos banquetes oferecidos no Palácio do Itamaraty pelo Barão do Rio Branco, titular da pasta das Relações Exteriores. Festas, vale acrescentar, cujos convites eram disputadíssimos pela alta sociedade carioca, conforme revela o advogado e escritor Rodrigo Octávio, no livroMinhas memórias dos outros .

 

Por ocasião da Conferência Pan-Americana, realizada no Rio de Janeiro em 1906, o Instituto além de ceder suas dependências e de receber convidados internacionais, integrou-se à ciranda de homenagens ao secretário de governo norte americano Elihu Root, principal personalidade estrangeira presente ao evento, conferindo-lhe ainda o título de sócio honorário. A corporação também se fazia notar em cerimônias religiosas, concertos e exposições de obras de arte, a exemplo da mostra do famoso pintor português José Malhoa organizada pelo Real Gabinete Português de Leitura, em 1906.  Como se vê, o Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros ocupava lugar de destaque na agitada vida social do Rio de Janeiro da belle époque.

 

Mas as festas e amenidades, vez por outra, davam lugar a escaramuças jurídicas.  A questão levantada sobre o direito dos advogados e dos magistrados a tratamento especial, quando submetidos à prisão preventiva, ensejou uma disputa envolvendo sócios Drs. Carvalho Mourão, Lima Drumond, Nodden Pinto e Solidonio Leite.

 

Para Carvalho Mourão, a concessão de tal prerrogativa era inconstitucional, ao passo que outros três jurisconsultos sustentavam tese oposta. A divergência se encerrou com um parecer de Theodoro Magalhães, que acabou contentando a gregos e troianos, ou seja, de que (...) a igualdade dos cidadãos perante a lei não pode ser entendida em termos absolutos. Assim, concluiu o Dr. Magalhães, o privilégio não deveria ser suprimido, mas sim estendido (...) a outras classes de cidadãos como o médico, o banqueiro e o industrial (...) não há motivo para exclusivismos e a medida deve ser geral, atenta as condições humilhantes em que fica o cidadão de certa importância e serviços, quando recolhido à detenção, (...)

 

Outra discussão memorável girou em torno da questão se (...) é lícita presença de símbolos religiosos nas dependências dos tribunais, perante os princípios firmados pela Constituição Federal. O assunto veio à baila a propósito da conduta do juiz de direito da 5º Vara Criminal do Distrito Federal, que recolheu da sala das sessões do júri a imagem de Cristo crucificado - atitude que foi duramente censurada pelo Dr. Pinto Lima, em sessão do Instituto.

 

As opiniões se dividiram. A Carta de 1892 estabeleceu, efetivamente, a separação entre a Igreja e o Estado. Neste sentido, havia quem tomasse o dispositivo ao pé-da-letra. Outros reconheciam o princípio, mas não aceitavam o comportamento do magistrado, justificando que não se poderia desprezar a tradição católica do país. Uma terceira corrente tentava conciliar as duas posições. A discussão prosseguiu animada por um bom tempo, mas os jurisconsultos não chegaram a um acordo, terminando por deixar a questão em aberto.

 

Aliás, o mesmo ocorreu em relação ao indicativo sobre a introdução do divórcio no Brasil.  Tema que, sem dúvida, desencadeou a mais extensa e disputada polêmica no IOAB, no período aqui estudado. Basta dizer que superou até o longo debate ali travado, a respeito do ingresso de mulheres na corporação.

 

A contenda se iniciou na sessão de 16 de maio de 1907, quando o Dr. Marcílio Teixeira de Lacerda, encarregado de estudar a questão, expôs o seu relatório, defendendo a necessidade da instituição da lei do divórcio. O Dr. Marcílio iniciou sua intervenção qualificando a causa de nobre e patriótica:

 

(...) Nobre porque representava a libertação do Prometheu acorrentado da sociedade, os quais como o personagem da tragédia grega (...) clamam por justiça e pedem liberdade! (...) Mas tudo em vão, porque o vozerio estonteante do preconceito domina o grito dos oprimidos e o egoísmo dos bem casados é surdo às súplicas dos infelizes. (...) Patriótico, porque é a consubstanciação de uma das mais altas aspirações nacionais (...) um desejo afagado pela maioria da nação...

 

Mal havia pronunciado essas palavras introdutórias, Teixeira de Lacerda foi interrompido por intervenções dos sócios Esmeraldino Bandeira e Pinto Lima. A muito custo, tantos foram os comentários, ele conseguiria levar adiante a leitura e concluir seus argumentos. A resposta ao relatório veio de Pinto Lima:

 (...) Sua Ex., diz o orador, dá como fim do casamento a cópula carnal, contra isso protestava, pois aceitava a carapuça de bem casado sem que com isso fosse egoísta; diz que o fim do casamento é a troca de afeto, o convívio do lar (...) a palavra casamento significa um laço indissolúvel e por isso não pode ser um contrato, que é temporário (...) O orador entra em várias considerações para demonstrar a inconveniência do divórcio, a que chama um mal necessário, mas, como só uma minoria dele necessita, a maioria não pode ser coagida a aceitá-lo; quais, pergunto serão os pais dos filhos de uma mulher divorciada muitas vezes e outras tantas casadas?

 

Ao final desta réplica, a sessão teve de ser interrompida, face o número de inscrições para apartes. Instalou-se a contenda, com a formação de dois partidos e a sala das sessões do Instituto transformou-se em uma arena: de um lado, perfilaram-se os sócios favoráveis à instituição do divórcio, capitaneados por Teixeira de Lacerda; de outro, aglutinaram-se os que eram contrários, sob a liderança de Pinto Lima. No primeiro grupo, ocupavam posição de destaque Deodato Maia, Myrthes Gomes de Campos, Avelar Brandão e Gastão Victória. No segundo, salientavam-se Esmeraldino Bandeira, o Visconde de Ouro Preto, Taciano Basílio e Octacílio Câmara. Este último, inclusive, declarava combater o divórcio sustentando-se na doutrina filosófica de Augusto Comte:

 

(...) por princípios utilitaristas; escudado no positivismo comtista repele as conclusões da tese que (o divórcio) viria dar alforria à pretendida escravização da mulher, porquanto no seu entender a incapacidade da mulher casada é decorrente do poder marital, (...) chama de utopia o feminismo que pretende dar à mulher outras funções que não as do lar.

 

As duas facções se mostravam igualmente aguerridas e as escaramuças prosseguiriam, com réplicas e tréplicas a cada sessão. É bem verdade que, por esta ocasião, o tema do divórcio andava na ordem do dia no Rio de Janeiro, discutido tanto nas esquinas, quanto nos salões mais aristocráticos. Não se falava de outra coisa na cidade, desde que a conhecida revista Kosmos começou a publicar a novela A Divorciada, de Cunha de Mendes.

 

Ao que parece, a desventura amorosa dos heróis da novela - Paulo Leão e Arlinda, a divorciada, deram um novo ânimo à facção do Dr. Teixeira de Lacerda. Eles conseguiram aprovar na plenária do IOAB um indicativo, para que fosse nomeada uma comissão especial, encarregada de formular um projeto de lei, com vistas à Câmara dos Deputados, (...) que estabeleça o divórcio com a dissolução do vínculo conjugal, a ser encaminhado ao poder legislativo.

 

O certo é que a questão permaneceu na pauta de todas as sessões do Instituto até o final de 1907, quando se estabeleceu uma espécie de trégua entre os litigantes.  A discussão foi suspensa em nome de um assunto da mais alta prioridade: a contribuição do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros aos festejos que o governo tencionava promover em 1908, para celebrar a passagem do centenário da “Abertura dos Portos”.

 

Pouco explorado pela historiografia, talvez porque não tivesse suscitado brilhantes intervenções ou polêmicas, há um conjunto de propostas que foram apresentadas no Instituto da maior relevância, a exemplo de um projeto oferecido pelo Dr. Deodato Maia, na sessão de 6 de julho de 1911, para a regulamentação do trabalho das mulheres e dos menores na indústria e no comércio.

 

O Dr. Deodato fundamentou o seu projeto em uma simples constatação: na legislação brasileira não havia nenhum dispositivo que tratasse daqueles assuntos. Assim, indicou que o Instituto representasse ao governo no sentido de estabelecer normas que protegessem a mulher e o menor trabalhadores. Complementando a proposição, sugeria, ainda, a criação de um Departamento Geral do Trabalho, com as seguintes finalidades: 1º coordenar e publicar todos os dados relativos ao trabalho; 2º organizar o Código do Trabalho; 3º difundir e propagar a criação de institutos de previsão e mutualismo, destinados aos socorros mútuos os operários e suas famílias, especialmente às caixas de maternidade. Caberia, ainda, ao órgão zelar pela execução das leis do trabalho[33].

 

No projeto, na parte relativa às crianças e aos adolescentes, dentre outras disposições, fixava em dez anos, a idade mínima para o ingresso no mercado-de-trabalho. A jornada de trabalho dos menores entre dez e quatorze anos não poderia ultrapassar seis horas, com intervalos de até uma hora, sendo que aos analfabetos seriam concedidas mais duas horas para que adquirissem instrução primária, em colégios localizados num raio de até dois quilômetros. Os estabelecimentos industriais com mais de vinte menores empregados, e situados além dessa distância ficavam obrigados a manter uma escola em suas dependências.  Proibia o trabalho noturno, bem como nos domingos e feriados, nos ambientes subterrâneos e nas empresas que utilizassem inflamáveis, ou lidassem com atividades de alta periculosidade. Já para os adolescentes entre quatorze e dezesseis anos, estabelecia apenas carga horária de oito horas por dia, também com interrupções periódicas, não impondo maiores restrições. Em ambos os casos, só poderiam ser admitidos menores que apresentassem certidão de nascimento, atestado de vacina e prova de boa saúde.

 

Quanto às mulheres, estipulava o período de trabalho em dez horas diárias, com  pausa de uma hora. Vedava o trabalho feminino noturno, nos domingos, na limpeza de motores e no manejo de máquinas ditas perigosas. No caso de gestantes, não seria permitida a manipulação de substâncias químicas ou de metais pesados, como chumbo, ou que emanassem vapores tóxicos, a exemplo das operações realizadas para branquear o algodão nas tecelagens. Concedia licença-maternidade e amparava as mães no período da lactância, concedendo o direito de interromper as atividades por quinze minutos a cada duas horas, para amamentar.  Os estabelecimentos industriais ou comerciais que dessem emprego a mais de trinta funcionárias deveriam manter uma creche.

 

As idéias defendidas pelo Dr. Deododato, para a época, constituíam um formidável avanço em termos de legislação operária, pois se sabe que nas fábricas a jornadas de trabalho chegavam a alcançar dezesseis horas diárias, em semanas de seis ou sete dias, até mesmo para as crianças.  De todo o modo, a proposição foi aprovada no Instituto por uma comissão, embora com algumas restrições, em nome da liberdade industrial. Considerou-se também dispensável a concessão de duas horas para instrução dos menores analfabetos, a fim de que não houvesse (...) interrupção do serviço nem ocasiões de nociva vagabundagem nas ruas.

 

A presença feminina no IOAB pode ter provocado os debates sobre novos temas. No entanto, estes mesmos temas já eram questões latentes na sociedade brasileira. A aceitação da própria Dra. Myrthes já caracterizou essa nova ambiência. A dra. Myrthes, por sua vez, destacou-se não só no IOAB, mas também em diversos congressos jurídicos ocorridos e, 1905, 1908 e 1922, quando defendeu o tema da constitucionalidade do voto feminino, sendo uma das deflagadoras dos debates sobre o voto das mulheres no Brasil. Em 1924, a advogada assumiu o cargo de encarregada de jurisprudência do Tribunal de |Apelação do distrito Federal, aposentando-se em 1944.

 

A admissão da Doutora Myrthes no IOAB foi um marco para a história das mulheres no Brasil, e aconteceu no bojo de diversas modificações na associação. Mudança física, para o prédio do Silogeu, e mudanças nas propostas de inserção política dos advogados, que cada vez mais tratavam de temas em consonância com a sociedade. Pensando e discutindo questões que tinham reflexos no dia a dia dos cidadãos, e da República, os advogados se modernizaram e adequaram seus esforços, não só aos interesses específicos de sua associação, mas, para a vida política do país, no sentido mais amplo.

 Por Tania Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira, UERJ/Prociência/CNPq/Pronex -  Este texto foi elaborado a partir de pesquisas realizadas para o livro da coleção da OAB sobre a história da Ordem dos Advogados do Brasil. Ver Lúcia Maria Paschoal Guimarães, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira, Marly Silva da Motta, in Hermann Assis Baeta.(DIR) O IOAB na Primeira República. Brasília: OAB editora, 2003, v.v.3

do site Fortalecimento da Advocacia Privada

Em disputa sobre paternidade, lésbica vence homem em tribunal dos EUA

 


O casamento entre um homem e uma mulher e entre pessoas do mesmo sexo está cada vez mais parecido, nos EUA, conforme as histórias que desenrolam nos tribunais do país. A união entre duas mulheres, por exemplo, já percorre os mesmos caminhos do casamento tradicional nos tribunais: o casal comparece perante o juiz para se casar e, mais tarde, para se divorciar e discutir a custódia dos filhos.

Só há um fato novo, que diferencia o casamento tradicional do casamento entre lésbicas: a mulher tem de buscar seu direito à “paternidade”, quando necessário. Até agora, o termo “maternidade” só aparece na legislação americana para fins trabalhistas, quando se refere à licença-maternidade.

No último capítulo de uma dessas histórias judiciais, em New Hampshire, uma homossexual perdeu seu direito à “paternidade” para o atual marido de sua ex-parceira em um tribunal, mas a recuperou na corte superior do estado.

De acordo com a decisão do tribunal superior, a lei de New Hampshire estabelece que “um homem é presumidamente o pai de uma criança se: (...) a criança, que ainda não atingiu a maioridade, é recebida por ele em sua casa e é considerada por ele como seu(sua) filho(a)”.

O tribunal decidiu, por unanimidade, que essa presunção de paternidade se estende a pais do mesmo sexo, mesmo que os “pais” sejam mulheres, pois “pai” + “mãe” = “pais”, na matemática do idioma. O Direito, diz a decisão, inclui um “pai” — mesmo que mulher — sem qualquer ligação biológica com a criança. E mesmo que a mulher, no caso, nunca tenha sido casada legalmente com sua parceira.

Segundo os autos, Susan B e Melissa D viveram juntas desde 1997. Em 1998, celebraram uma cerimônia de compromisso, pois o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não era legalizado em New Hampshire à época, e decidiram construir uma família. Em 2002, Melissa teve Madelyn, que foi registrada como filha das duas mulheres. O nome de Susan, então apontada como guardiã, está nos documentos do jardim de infância e nos registros médicos da menina.

Susan montou um berçário na casa que ela e Melissa compraram juntas e estava na sala durante o parto de Madelyn. Quando a menina cresceu, Melissa se tornou a “mommy” e Susan a “momma”. “Amei Maddie como minha filha, a criei como minha filha e sempre a vi como minha filha”, ela escreveu em sua petição à corte.

Madelyn tinha seis anos quando o casal terminou o casamento. Logo a seguir, Melissa se casou com um homem, que passou a tratar Madelyn como filha. No ano passado, Melissa moveu uma ação judicial para extinguir a guarda de Susan, para que seu marido pudesse adotar Madelyn como filha, oficialmente. Ela alegou que Madelyn não queria mais ver Susan e parou de descontar os cheques que a ex-parceira enviava mensalmente, como pensão alimentícia.
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Na Vara de Família, o juiz determinou que Susan não tinha direito de paternidade sobre Madelyn e rejeitou a petição de Susan pelo reconhecimento da paternidade. Mas o tribunal superior de New Hampshire anulou a decisão este mês, e confirmou o direito de Susan à “paternidade”.

“Dois adultos, Melissa e Susan, intencionalmente trouxeram Madelyn ao mundo e a tiveram como a filha do casal. Não podemos ler a lei tão estreitamente, ao ponto de negar a Madelyn a legitimidade de sua paternidade — nem seu direito a suporte — de suas duas mães”, escreveu o ministro Gary Hicks, em nome de um painel de cinco ministros do tribunal superior do estado. “Observamos que a intenção do marido de Melissa de adotar Madelyn não altera nossa visão”, acrescentou.

De acordo com a decisão, presunções de paternidade atribuem grande peso ao relacionamento familiar desenvolvido entre um pai e uma criança, após anos de convivência. “Em um caso diferente, rejeitamos a alegação de um demandado, a mãe biológica da criança, de que o demandante não poderia ser um ‘pai’, segundo a lei, porque ele não atendia à definição do dicionário de que pai “é alguém que gera ou produz a prole”, escreveu o ministro.

João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.

Revista Consultor Jurídico, 13 de julho de 2014

sábado, 26 de julho de 2014

Coração partido por casamento rompido, mesmo sem motivo, não enseja dano moral

Casar e viver feliz para sempre. Depois de não alcançar esse objetivo na vida, uma mulher buscou na Justiça indenização por danos morais infligidos pelo noivo, que desfez o casamento meses após consumado, sem nenhuma satisfação, ao tempo em que ela já estava grávida. O pleito, negado em 1º grau, também foi rechaçado pela 6ª Câmara de Direito Civil do TJ, ao analisar a apelação.

"Para que se caracterize o dever de reparação, é preciso conduta ilícita, o dano e a ligação clara entre aquela e o dano. Mas, nesta situação [...] não há a menor possibilidade de se considerar tal fato como ação ilícita, partindo do princípio de que ninguém é obrigado a ficar com quem não queira", anotou o desembargador Alexandre d'Ivanenko, relator da matéria. A câmara, de forma unânime, entendeu ser incabível a utilização do Poder Judiciário para resolver - e aferir vantagem econômica em razão disto - situações cotidianas de mero dissabor afetivo. Seus integrantes anotaram ter ciência da dor intensa sofrida pela autora, mas decretaram inexistência de dano moral.
"[São] simples dissabores [...], pequenos incômodos e desprazeres que todos devem suportar na sociedade em que vivemos", relativizou o relator. Os magistrados vislumbraram ainda nítida intenção da apelante - não conformada com o término do relacionamento - de lesar o ex-companheiro. Embora tenha afirmado que o fim do casamento se deu durante a gravidez, a mulher entrou em contradição ao contar a uma amiga do casal que, após o nascimento da filha, o então marido passou a reclamar da falta de atenção dela, em razão do bebê.

Fonte: Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Quando se usa impetrar, ajuizar, interpor e protocolar?

Publicado por Amariole Tais Marmet
Verbos e medidas jurídicas: repeteco


Boa Tarde pessoal, mais uma vez fiquei em dúvida quando estava elaborando minhas petições, acredito que seja uma dúvida comum ao escrever na vida de qualquer advogado. Diante disso, resolvi pesquisar, afinal, sempre me pergunto quando devo utilizar propor ou ajuizar ou interpor e achei muito interessante esse pequeno texto que encontrei no site do MP do Paraná!

Medida - Verbo indicado

  • Recurso - interpor
Ex: O Ministério Público interpôs recurso no Tribunal de Justiça contra a decisão que condenou o réu a quatro anos de detenção. Segundo o promotor responsável, a pena não é proporcional à gravidade do crime.

  • Petição - protocolar
Ex: Os advogados protocolaram petição no Tribunal de Justiça, requerendo a suspensão da liminar concedida pelo juiz da comarca de Castro.

  • Mandado de segurança - impetrar
Ex: O funcionário público impetrou mandado de segurança para anular a decisão administrativa que o afastou da função.

  • Habeas corpus - impetrar
Ex: Ontem, Fulano de Tal, advogado de Beltrano, impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça. Segundo ele, o réu pode responder ao processo em liberdade por ser primário e ter bons antecedentes.

  • Ação civil pública – apresentar / ajuizar
Ex: O Ministério Público apresentou/ajuizou ação civil pública por ato de improbidade administrativa contra o ex-prefeito. A ação foi protocolada ontem.

  • denúncia - oferecer / propor
Ex: O MP ofereceu/propôs denúncia contra Cicrano, por homicídio qualificado. A denúncia foi protocolada ontem, na Central de Inquéritos.

  • Parecer - emitir / dar (termo não técnico)
Ex: O procurador de Justiça emitiu parecer favorável ao réu, por não estarem presentes as condições para a decretação da prisão preventiva.

  • liminar - conceder/ requerer
Ex: O juiz concedeu a liminar requerida pelo Ministério Público. sentença -

  • Proferir/ prolatar
Ex: A sentença proferida pelo juiz Fulano condenou o réu a cinco anos de prisão.

  • Despacho - proferir
Ex: O desembargador-relator proferiu despacho concedendo a liminar requerida.

  • Embargos - opor / ajuizar
Ex: O devedor ajuizou embargos à execução, alegando que a dívida já havia sido paga.

É bom lembrar: deferir X indeferir

Deferir significa despachar favoravelmente, conceder, concordar.

Ex: O juiz deferiu requerimento do Ministério Público e a casa de shows não poderá funcionar até que apresente em juízo toda a documentação necessária. Indeferir: não atender

Ex: O juiz indeferiu o pedido do Ministério Público, porque a casa de shows apresentou em juízo a documentação que atestava as condições de segurança e higiene exigidas.


Fonte: <http://www.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=873>

do site JusBrasil

terça-feira, 22 de julho de 2014

Françoise Dolto, uma médica de educação

Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar Subj. v.6 n.2 Fortaleza set. 2006


Maria Cristina Machado Kupfer
Professora Associada, em RDIDP, no Programa de Pós-graduação Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade - PSA, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Diretora da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do PSA/IPUSP, e psicanalista. End.: R. Heitor de Andrade, 40. CEP 05441-020 São Paulo SP. E-mail: mckupfer@uol.com.br




RESUMO
O presente artigo apresenta as idéias sobre a educação familiar e sobre a escolarização de crianças, desenvolvidas por Françoise Dolto, psicanalista francesa, a partir de sua prática como pediatra e depois como psicanalista de crianças. Apresentam-se as origens dessas idéias em conexão com a biografia da autora. Apresenta-se ainda a influência exercida por Dolto a partir de 1976, na França, bem como a criação das Casas Verdes, instituições educativas que também conheceram grande repercussão e difusão. Avalia-se, finalmente o trabalho desenvolvido por Dolto no campo da psicanálise de bebês e suas conseqüências para a educação de crianças.
Palavras-chave: educação de crianças, psicanálise, Françoise Dolto, Casas Verdes


ABSTRACT
This paper aims to present Françoise Dolto' s ideas about familiar and school education. Françoise Dolto was a french pediatrician and child psychoanalyst whose ideas have had a great repercussion in the seventies. Dolto also created the Green Houses, which are educative institutions spread out over France. This paper also presents the work of Dolto in the field of babies' psychoanalysis. This work has also had consequences for the practice of child education nowadays.
Keywords: child education, psychoanalysis, Françoise Dolto, Green Houses




Françoise Dolto foi uma psicanalista francesa que teve grande influência sobre a educação de crianças de seu tempo. Ao iniciar seus estudos de Medicina, em 1932, já pensava em dedicar-se à Pediatria. Mas foi depois de uma análise pessoal, feita com o psicanalista francês René Laforgue, que Dolto iniciou sua carreira como psicanalista, em especial como psicanalista de crianças. E foi a partir dessa experiência de trabalho que desenvolveu um pensamento original sobre a educação de crianças, para uso de pais e de educadores, inspirando-se nos conhecimentos que a psicanálise e sua prática puseram à sua disposição.
Entre os anos de 1976 e 1978, Dolto (2004) participou de uma série de programas na Radio Francesa. Ali, respondia a cartas de pais e conheceu um enorme sucesso. Os pais lhes apresentavam situações e ela respondia com muita tranqüilidade a respeito de como deviam proceder. A geração que conheceu seus conselhos chegou a cunhar um termo para designar os comportamentos que tinham sua marca: seguindo-os, uma mãe estaria agindo à Dolto, ou "doltoizando". Era a Doltomania que se alastrava pela França (L'Express, 1990).
Criticada e atacada por muitos psicanalistas de seu tempo, Dolto hesitou antes de aceitar o encargo de popularizar a psicanálise de crianças. Mas por que não, refletia ela no prefácio de "Quando surge uma criança", de 19.., responder ao pedido de ajuda dos pais, para "desdramatizar" situações em que ambos os lados se encontravam paralisados? Não seria possível, pensava ela, "desculpabilizar" uns e outros, a fim de despertar os poderes da reflexão? E, finalmente, embora soubesse que iria dar no que falar, se perguntava se essa seria essa uma razão para não tentar? Dolto tentou, e não são poucos os pais que agradecem até hoje a ajuda que lhes deu.
Há quem diga estarem na infância as raízes da vocação de Dolto para a prática psicanalítica, bem como de seu pensamento sobre a educação de crianças. Nascida em 1908, teria vivido, segundo seus contemporâneos, uma infância cheia de percalços, o que a teria levado a desejar para as demais crianças uma vida melhor do que a sua fora. Não foi isso, contudo, o que ela contou em muitas das entrevistas que concedeu à imprensa. Tendo sofrido o que sofria qualquer criança de seu tempo, uma vez que a educação de crianças não acolhia bem seu sofrimento psíquico, Dolto decidiu tornar-se pediatra, na tentativa de contribuir para a diminuição desse sofrimento.
Foi muito cedo que ela tomou essa decisão, tendo pensado, porém, de forma muito peculiar, sobre o que faria para ajudar as crianças. Aos 8 anos, decidiu que se tornaria um "médico de educação".

Uma infância infeliz?
Dolto não tem ainda uma única biografia oficial. O que existe em seu lugar são muitas entrevistas, alguns textos autobiográficos, filmes feitos sobre ela. Mas esse conjunto é suficiente para nos dar uma boa idéia da vida de Dolto. Nele se encontram alguns fatos que foram muito explorados e virados do avesso, principalmente pelos psicanalistas, que fizeram verdadeiras escavações em seu passado e em sua infância, em busca das origens de seu talento para analisar ou para ouvir as crianças.
Nascida em uma família parisiense de classe média, era a terceira em uma fratria de 7 filhos do casal Henri e Suzanne Marette. Eram duas meninas e 5 meninos e, segundo seus biógrafos, parece ter sido muito determinante na vida de Dolto que fossem duas meninas. Quando tinha 12 anos, sua irmã mais velha, que contava então 18 anos, morreu em conseqüência de um câncer. Algumas semanas antes, a menina Françoise iria fazer a primeira comunhão, e por isso sua mãe lhe recomendara que rezasse muito para salvar sua irmã doente. Não foi possível. É emocionante ouvir Dolto contar, em uma entrevista para a televisão para Bernard Pivot, em 1987, que ela pensava ter podido salvar sua irmã, mas que havia falhado por não ter rezado o suficiente. Foi, aliás, essa a acusação que sua mãe lançou para ela, e o sentimento de culpa a partir daquele momento foi imenso. Sua análise, feita 14 anos depois, salvou-a da culpa, mas Dolto continuou com a firme convicção de que "se soubéssemos rezar, seríamos capazes de milagres!" (Pivot, 1987).
Dolto, que sempre foi religiosa e católica praticante, ficou profundamente marcada por essa culpa, sobretudo porque sua irmã era loira, tinha olhos azuis e representava um ideal de beleza que a pequenina, gorducha e morena Françoise estava longe de alcançar aos olhos de sua mãe. Agora caberia a ela ter os netos que sua mãe esperava, segundo relata Dolto naquela mesma entrevista, mas a beleza loira e azul estava perdida.
Depois da morte da irmã, tudo parece ter ficado difícil nas relações entre Françoise e a mãe. Esta última teria perdido o controle; tornou-se amarga e cheia de rancor, dirigido principalmente a Françoise, culpada por não ter sido ela a que morrera.
Seu pai, ao contrário, parecia acolhê-la e protegê-la. Dolto se lembrava dele com ternura, e foi ele quem introduziu para ela os grandes autores da literatura francesa, com exceção, naturalmente, daqueles que não serviam para a leitura de jovens inocentes (Zola era proibido, porque tinha passagens "pesadas", mas Maupassant podia ser lido sem preocupações!) (Enfances, 1987).
Uma mãe que "a odiava", um pai pouco firme em sua função de frear a mãe em seu desvario, eis a fórmula que poderia ter fabricado, de acordo com alguns psicanalistas, uma psicose! Por isso, muitos entrevistadores perguntaram a Dolto como ela havia escapado de um destino tão funesto? Perguntavam mais: se não teria sido a própria superação de seus males infantis que lhe acabaria produzindo o húmus sobre o qual floresceu seu talento de psicanalista (Dolto, 1989).
Dolto era uma psicanalista fina e elegante. Em suas entrevistas ou textos autobiográficos, jamais atacou a mãe. Ao contrário, olhava-a com grande comiseração, e não duvidava, no tempo de adulta, do amor de sua mãe por ela. Desculpava-a por seu destempero, e buscava entender as raízes da dor e do sofrimento no fato de que ela, sua mãe, achava-se feia. Além disso, seu avô materno fora loiro de olhos azuis... É verdade que Dolto estava psicanalisando a mãe, mas o fato é que ela parecia não se preocupar mais com seus "traumas de infância".

A médica de educação
Sempre que contava a origem de sua vocação, Dolto se lembrava do episódio que havia ocorrido com um irmão menor. Tendo presenciado uma briga entre a babá e a cozinheira, o menino vomitou. Chamado o médico, o coitado foi posto em dieta. Mas Dolto havia compreendido que o vômito era apenas uma reação "emocional", assim classificada com uma palavra da qual na época ela não dispunha, mas que mostrava bem a sua capacidade de sintonizar com a dimensão inconsciente, ainda inominável para ela, da vida das crianças. Concluiu, naquela ocasião, que o mais importante teria sido dar novo alimento ao irmão, ao invés de privá-lo de comida, para ajudá-lo a superar o episódio traumático (Pivot, 1987).
Ao tornar-se pediatra, sua prática tinha como marca essa capacidade de "ler o corpo" das crianças. Ou seja, a doença somática podia ter outras causas, que não se reduziam ao funcionamento puro e simples, ou mecânico, do corpo. Durante a Segunda Guerra, por exemplo, o boom de enurese que os meninos apresentaram foi lido por ela como uma manifestação edípica, fruto da ausência repentina dos pais que eles agora teriam, na fantasia, de substituir para suas mães (Dolto, 1989).
A psicanálise veio, inicialmente, como um instrumento que poderia ajudá-la a fazer melhor essa leitura em seu trabalho de pediatra. Mas é preciso notar que, tornando-se psicanalista, não abandonou o que sempre foi sua primeira motivação: a leitura do corpo. Como psicanalista, tanto de crianças como de adultos, o corpo que a preocupava como médica não desapareceu, e apenas deu lugar ao corpo erógeno, libidinal.
Contrariamente a muitos psicanalistas cuja formação deu-se originalmente nos cursos de Psicologia, Dolto ouvia a palavra de seus pacientes e a tomava freqüentemente em sua articulação com o corpo. Pode-se dizer que, para ela, era o corpo que falava. Essa é provavelmente uma marca de estilo que, com outras, fez a grande eficácia de seu trabalho. Assim, ser uma médica de educação era, no fim das contas, ser uma psicanalista que cuidava das doenças do corpo libidinal que uma criança enfrentava no decorrer de seu desenvolvimento ou, para usar o termo de Dolto, no curso de sua educação.
Assim, estão na infância, mas por razões diferentes daquelas apontadas por seus contemporâneos, as raízes que fariam de Dolto uma profissional situada no cruzamento entre a pediatria, a psicanálise e a educação.
Não foram, na realidade, os traumas de infância que a levaram a ser a grande psicanalista de crianças em que se transformou. Dolto era de fato uma criança movida por uma curiosidade intensa, uma perguntadora incessante que não encontrava acolhida nos adultos. Quando perguntava demais, era castigada: ficava sem sobremesa!
Ao ser uma perguntadora incessante, Dolto não se distanciava das crianças do tempo de Freud: Dolto nasceu em 1908, no mesmo ano em que Freud escreveu sobre o Pequeno Hans (Freud, 1908). Naquele texto freudiano, que analisa o surgimento de uma fobia em um menino de 5 anos, há inúmeras referências à curiosidade das crianças e em especial desse menino, o pequeno Hans, bem como ao fato de que os adultos "daquela época" costumavam abafar a curiosidade ou mesmo as manifestações psíquicas - os medos, por exemplo - das crianças com gritos ou com indiferença. Assim, Dolto era contemporânea das "crianças de Freud" e compartilhava seu mesmo destino, o de não merecer a atenção dos adultos, quando se tratava quer da atividade intelectual infantil, quer da subjetiva.
As crianças do tempo de Dolto e de Freud não eram ouvidas, não recebiam a atenção dos adultos. Como não eram, digamos, levadas a sério - o que fazem é coisa de criança! - não se lhes dizia a verdade, supondo-se que nada compreenderiam. Mas tanto Freud quanto Dolto sabiam dos efeitos terríveis que podiam ocorrer às crianças quando essas sabiam - inconscientemente - sobre a verdade dos fatos, mas nada lhes diziam sobre eles, obrigando-as a supor que, se ninguém lhes dizia nada sobre o que todos sabiam, então deveriam calar-se ou fingir que tudo desconheciam, não fazendo senão imitar nisso os adultos. Por isso, Freud recomenda aos educadores de seu tempo o abandono da política da avestruz, que faz menos mal, segundo ele, do que a verdade nua e crua.
A menina Dolto, ainda ignorante desse texto magistral de Freud sobre o pequeno Hans, já está porém refletindo sobre os males que essas atitudes dos adultos causam às crianças. Decide então, numa antecipação surpreendente em relação às idéias com as quais irá entrar em contacto alguns anos depois, tornar-se "uma médica de educação".
Aos 79 anos, eis como Dolto define essa profissão que ela inventou e decidiu abraçar já aos 8 anos de idade: "um médico de educação é um médico que sabe que os problemas na educação podem provocar doenças nas crianças, não verdadeiras doenças, mas capazes de causar aborrecimentos para as famílias e complicar a vida das crianças, que poderiam sem isso viver muito mais tranqüilas" (Pivot, 1989). Mais tarde, aos 23 anos, definiu sua "profissão" como sendo a tentativa de curar e também de prevenir. O amigo a quem ela confessou seu desejo lhe disse então que ela precisava conhecer a psicanálise.
Aos 8 anos, Dolto concluiu que os adultos não entendem as crianças. Precisava então dedicar sua vida à causa das crianças. Estava nascendo ali a grande psicanalista de crianças em que iria se transformar anos depois. Mas não apenas isso, nascia ali todo um trabalho que começou com as análises de crianças, mas prosseguiu buscando sempre iluminar o trabalho educativo dos pais e depois dos professores, na tentativa de evitar que "os problemas de educação" tirassem a tranqüilidade das crianças. Dolto tem uma extensa parte de sua obra dedicada a uma profunda e conseqüente reflexão sobre a educação.
A médica de educação tem ainda uma outra ressonância que cumpre destacar. A expressão parece sugerir que também a educação precisa ser tratada, medicada, já que tem "problemas". Os médicos precisam tratar da educação doente. Nesse sentido, Dolto estaria sendo o arauto do higienismo, uma prática que já estava instalada na cultura ocidental desde o século XIX. Assim, Dolto estaria concordando, em princípio com aqueles médicos que se dispuseram a educar as famílias "nefastas" que, segundo eles, não sabiam educar e precisavam ser ensinadas.
Será que a médica de educação carregava os mesmos desígnios de controle político do higienismo? A obra de Dolto faz pensar que não. Dolto estava "afinada" com seu tempo, e sabia da importância da figura do médico na vida das famílias. Mas queria usar esse poder para tornar mais tranqüila a vida das crianças, objetivo bem diferente daquele do movimento higienista. Tudo o que desejava, conta Dolto em seu livro autobiográfico Enfances, de 1986, "era ser uma pediatra que compreendia a psicologia das crianças" (p. 103).

Sempre perto das crianças
Dolto parece ter sido um adulto que não se afastou e nem perdeu o contato com o mundo das crianças, e isso em vários sentidos dessa expressão.
Yannick François (1990) mostra-nos um desses sentidos. Ele afirma que, "no contato com as crianças, Dolto permaneceu atenta ao mistérios das palavras, à incerteza de seu sentido, à sua polissemia, tão próxima do mal-entendido" (p. 8). Por isso, conta ele, Dolto sentia-se livre, como as crianças, para inventar várias palavras designativas de aspectos de sua prática clínica : "mamaisar", "simboligênico" etc. Ao observar as invenções de Dolto, vale a pena prestar atenção nessa liberdade, nessa marca de estilo que ela tomou emprestado das crianças. O que Dolto buscou na invenção foi transmitir as experiências clínicas absolutamente singulares que seu olhar, único, extraía do caso, não sendo possível, portanto, transmitir essa experiência sem criar palavras novas. Mas para criar palavras novas e colocá-las em circulação, era preciso ousar, era preciso acreditar no que seus olhos e ouvidos estavam captando; era preciso não estar submetida ao censor e conservador mundo dos adultos, mundo que ela não levava muito a sério. Sérias - merecedoras de atenção - eram, ao contrário, as coisas de crianças!
Eis um fragmento, contado por Collette de Percheminier1, que mostra bem que Dolto nunca perdeu o contato com o mundo das crianças. Dolto gostava de brincar de rainha da Inglaterra com sua filha Catherine, quando ela era ainda uma garotinha. Essa brincadeira consistia em acenar do carro para as pessoas da rua bem à maneira como fazia a rainha da Inglaterra aos seus súditos, enquanto passava de carro pelas ruas de Londres. Um aceno breve, constante e cheio de majestade, acompanhado de mesuras discretas com a cabeça. Pois bem. Um dia, já entrada em anos, Dolto chegou em casa e confessou a Collette, com uma cara muito marota : "Hoje, brinquei sozinha de rainha da Inglaterra!" Ou seja, essa pequena "transgressão" ao mundo bem comportado dos adultos foi realizada no registro do espírito infantil, da brincadeira e do jogo do "faz-de-conta".

O aprendizado da leitura e da escrita
Aos quatro anos e meio, Dolto aprendeu a ler. Como era o costume em muitas famílias da burguesia parisiense, não freqüentava a escola, mas tinha em casa uma professora, "Mademoiselle", como era chamada, que a iniciou nas primeiras letras. É interessante ouvir Dolto contar que essa iniciação foi marcada por uma decepção, que quase a fez desistir de prosseguir estudando (Binet, 2000).
Dolto tinha como livro de cabeceira uma estória chamada "As estrepolias de Abukassam", e ela costumava folheá-lo imaginando histórias a partir das imagens que via. Quando, porém, pôde ler o texto que as acompanhava, percebeu que estavam longe de contar o que sua imaginação já havia fabricado antes.
Alguns autores, e mesmo a própria Dolto, buscaram extrair dessa iniciação a raíz de seu pensamento educativo, no qual há uma grande insistência em afirmar que uma criança só deve aprender a ler se o seu desejo estiver profundamente implicado nesse ato. Para ela, esse livro particular, eleito por ela como única coisa desejável, foi um ponto de partida que ela teve a sorte de ter, contrariamente a outras crianças, que precisaram ficar em uma sala de aula horas e horas. A partir de sua própria entrada na alfabetização, Dolto enunciou princípios que devem dirigir essa entrada: basear-se no desejo de aprender, e só fazê-lo depois que a criança puder sentir "o orgulho natural de se defender dos desejos dos outros e de saber-se prometido a assumir seus próprios desejos, os quais, a seus olhos, chamam-no em direção a um futuro fecundo de homem ou de mulher" (Binet, 2000, p. 42).
Esse modo de aprendizagem foi sem dúvida marcante, e a levou a refletir sobre o modo como as crianças eram ensinadas em anos posteriores, mas essa passagem também mostra a fértil e exuberante imaginação de que a menina Françoise era dotada. Seu mundo de fantasia preenchia os dias longe da mãe, que a mandava com seus irmãos, na companhia de Mademoiselle, para Deauville, e ficava em Paris assistindo seu pai doente.

A clínica de bebês: um novo impulso para as creches
Há um outro episódio marcante na infância de Dolto, além da morte de sua irmã e da doença de seu irmão. Trata-se, em sua interpretação, de uma prova do amor de sua mãe por ela, o que a fez nunca duvidar desse amor, mesmo depois dos tempos difíceis que viveu com ela por causa da morte da irmã. Aos 8 meses, Dolto foi acometida de broncopneumonia dupla, mas sua mãe a salvou mantendo-a contra seu peito por mais de 24 horas seguidas, sem descanso. Essa broncopneumonia, que levou os médicos a desenganá-la, adveio logo depois de sua babá ter sido sumariamente despedida por seus pais. O bebezinho mostrava com isso a falta que sua babá lhe fazia, mas não se sabia, naquela época, que um bebê podia "morrer de amor", como Dolto gostava de dizer, quando relatava essa passagem. A babá foi despedida porque costumava sair à noite levando consigo a pequenina, e ia a festas em um hotel de má reputação em que se consumiam drogas (Dolto, 1986).
Esse episódio tinha para Dolto valor especial. "As crianças que sobrevivem a grandes traumas tornam-se mais fortes que as outras", ela dizia (Pivot, 1987). Se não vale para todas, parece que valeu para Françoise, uma mulher que se distinguia, entre outras coisas, pela força para levar adiante seus projetos e convicções. Que eram muitos, aliás.
O fato é que seu projeto de ser uma "médica de educação" estendeu-se ao início da vida de uma criança. Dolto supunha que um bebê podia entender desde o seu nascimento o que lhe diziam à sua volta. Assim, a verdade precisava ser-lhe dita desde o início.
Dolto relata inúmeros casos de bebês cujos problemas de alimentação ou de sono desapareciam, quando as supostas raízes de suas dificuldades lhes eram explicadas. Essas raízes estavam, para Dolto, na relação mãe-bebê. Os bebês são muito sensíveis à angústia materna e reagem a ela, na tentativa de ajudar suas mães. São psicoterapeutas de seus pais, explicava ela. Em um de suas interpretações "milagrosas", falou a um bebê, que se recusava a comer, a respeito da morte de sua avó, e do quanto sua mãe fazia ainda esse luto. "Talvez você", disse-lhe ela, "esteja desejando ir ao encontro da vovó, que sabia tão bem cuidar de crianças, como pensa a sua mamãe". Pode-se imaginar o efeito que essa intervenção causou junto à mãe, mas é verdade que no dia seguinte a criança retomou a amamentação (François, 1990).
A influência de Dolto na postura dos cuidadores de creches foi imensa a partir dos anos 50. Ao dar valor às palavras dirigidas aos bebês, provocou uma difusão de conhecimentos que atingiu esses cuidadores, levando-os a conversar com os bebês diariamente. De acordo com um levantamento feito em 19..., essa prática de falar ao menos 5 minutos diariamente com os bebês parece ter diminuída em 50% a mortalidade infantil nas creches em uma região francesa (Dolto, vídeo).

As Casas Verdes
No decorrer das perguntas e respostas trocadas nos programas de rádio, era recorrente o tema da conquista da autonomia das crianças. Dolto podia perceber como era difícil, tanto para os pais como para as crianças, chegar sem conflitos à necessária separação dos pais e à autonomia psíquica das crianças. Assim, Dolto propôs e implantou uma experiência educacional sem precedentes na França, que dura até hoje e que teve reflexos no Brasil: as Casas Verdes (Pivot, 1987; Percheminier, 2005).
Dolto sabia que a autonomia precisava ser conquistada de forma gradual e regular. Em tempos anteriores, a praça pública podia ser um lugar em que as crianças ensaiavam distanciar-se dos pais, podendo experimentar jogos com outras crianças, tendo, porém, sempre por perto, o olhar vigilante da mãe. Podia recorrer a ela sempre que havia brigas ou disputas por brinquedos, por exemplo. Tratava-se de espaços intermediários entre a família e o social. Mas, já no tempo de Dolto, esses espaços haviam desaparecido. As crianças eram então obrigadas a fazer a passagem família/sociedade de modo brusco e, portanto, de forma traumática, tanto para os pais como para a criança.
Assim, era preciso inventar lugares em que pais e crianças pudessem fazer juntos essa experiência de separação gradual. Dolto os inventou em 1979. E acrescentou a eles pessoas com uma formação em psicanálise, não para patologizar ou interpretar as relações pais e filhos, mas para acompanhar esse "crescimento mútuo", fazendo com eles descobertas e encontrando modos próprios de educar. Esses "acompanhantes" eram verdadeiros médicos de educação.
Em 2001, os Arquivos Françoise Dolto contaram mais de 130 Maisons Vertes espalhadas pela França.
Dolto estava convencida de que a educação de uma criança se fazia, sobretudo, com o inconsciente, e que de nada valeriam conhecimentos pedagógicos aprendidos. Por isso era necessária essa presença de um "psi" auxiliando os pais a recuperar o contato com seu próprio desejo e com o desejo da criança.
Dolto não fornecia referências cronológicas ou pautas de desenvolvimento. Para ela, o importante era acompanhar a história de desejo singular de cada criança, pois era sobre ela que se erigia o seu desenvolvimento.
As Maison Vertes recebem crianças de zero a três anos com seus pais. Ali, são convidados a permanecerem durante o dia em uma grande sala onde há sofás e brinquedos espalhados pelos tapetes. As crianças ficam soltas, e podem ir até o cantinho da água, ou aos espaços reservados aos maiores, de três anos. Os três psicanalistas ficam por perto, sentam-se junto com eles, e conversam. Seu trabalho é o de acompanhar as crianças e seus pais. Um dos psicanalistas, que fica mais a distância, deve ser, segundo Dolto, uma espécie de esponja para a angústia. Durante os incidentes cotidianos na Maison Verte, sua função é "desdramatizar" as situações de tensão. Em resumo, a equipe deverá ajudar os pais a sustentar os filhos na descoberta dos outros e do mundo.
Françoise Dolto morreu aos 80 anos, em 1988, de uma insuficiência respiratória. Mas até o fim conservou um espírito firme, alegre, confiante. Por ser religiosa, morreu, segundo ela, curiosa para saber o que viria depois. O que veio depois foi, para nós, uma obra e uma influência que ainda permanecem até hoje nas gerações que a ela se seguiram.

Referências
Coronel, E., Mezamat, A. (Directors), & Knauff, T. (Producer). (1994). Tu as choisi de naître [Motion picture]. Paris: Abacaris Films. Dolto, F. (1977). Lorsque l'enfant paraît. Paris: Seuil. Dolto, F. (1986). Enfances. Paris: Seuil. Dolto, F. (1989). Autoportrait d'une psychanaliste. Paris: Seuil. Dolto, F. (1990). Dolto parle encore à nos enfants: Entrevista. 12 de janeiro de 1990. Paris: L'Express. Entrevista concedida a Dominique Simonnet. Dolto, F. (2003). Les grands entretiens de Bernard Pivot: Entrevista. Direção de Nicolas Ribowsky. Produção Ina. Paris: Gallimard. 1 DVD (168 min.). François, Y. (1990). De l'éthique à la pratique de la psychanalyse d'enfants. Paris: Centurion. Freud, S. (1976). Análise da fobia de um menino de cinco anos (Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 10). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1909).

Recebido em 10 de abril de 2006
Aceito em 10 de maio de 2006
Revisado em 20 de junho de 2006



Notas
1 Colette de Percheminier é diretora dos Arquivos Françoise Dolto, e concedeu uma entrevista à autora deste artigo em fevereiro de 2005.