A partilha de bens em separação que incorra em grave desproporção pode ser anulada, mesmo que os bens deixados ao cônjuge prejudicado não o deixem em situação de miserabilidade. A intensidade do prejuízo pode ofender a dignidade da pessoa humana e autorizar a intervenção do Poder Judiciário. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Segundo a autora da ação de anulação de partilha, ela foi convencida pelo ex-marido de que suas empresas estavam em dificuldades financeiras. Mesmo alertada pelo Ministério Público (MP) da desproporcionalidade da divisão, as alegações do ex-cônjuge e do advogado que representava o casal a convenceram a aceitar os termos. Na ação, afirmava ter sido enganada por meio de ação dolosa e lesiva do ex-marido e seu advogado.
O juiz de primeiro grau negou o pedido. Para ele, ainda que a partilha como feita fosse “catastrófica” para a autora, a Justiça não poderia intervir. Teria havido apenas arrependimento posterior pelo mau negócio realizado e não vício de consentimento.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) manteve o entendimento manifestado pelo juiz de primeiro grau. Segundo o tribunal, mesmo verificado o desequilíbrio, ele não bastaria para anular a partilha. A lei permitiria que o juiz interferisse apenas no caso de os bens serem insuficientes para a manutenção da dignidade humana de cônjuges ou filhos, mas o Judiciário não poderia intervir na livre manifestação de vontade das partes.
A ministra Nancy Andrighi, no entanto, divergiu dessa orientação: “Uma desproporção tão grande a ponto de autorizar a qualificação da partilha como catastrófica pelo juízo de primeiro grau não pode indicar a preservação da dignidade humana. Dignidade não é apenas a manutenção do mínimo substancial. A sua preservação tem de ter em conta as circunstâncias particulares de cada situação concreta”.
Dolo
Para a ministra, em nenhum momento se discutiu o conhecimento da desproporcionalidade da divisão, questão não levantada pela autora. O que ela alegou na ação é que somente aceitou a desproporção evidente porque foi induzida a erro pelo ex-marido e seu advogado.
A ação intencional estaria configurada nas declarações relativas à saúde financeira das empresas gerenciadas pelo ex-cônjuge, que justificariam um sistema de compensações na divisão do patrimônio comum. Além disso, a autora destaca a existência de conflito de interesses do advogado que representava o casal, que passou a defender o ex-marido na ação de anulação.
“Ora, nessa circunstância, em que se alega a existência de dolo a viciar a percepção de uma das partes quanto à realidade subjacente ao negócio jurídico, o mero alerta quanto à desproporcionalidade da partilha não é suficiente para trazer luz à autora. Ela sabe que a partilha é desproporcional, mas acredita na existência de um motivo para que ela seja assim”, afirmou a relatora.
Dor, perda e serenidade
No entender da ministra Nancy Andrighi, o controle judicial sobre a manifestação de vontade na partilha não se justifica apenas sob o ponto de vista da subsistência. “O que caracteriza especificamente o controle, para além desse princípio, é a constatação de que um processo de separação, ainda que consensual, é um processo de dor e perda. É muito comum que a visão de uma das partes esteja clara pela certeza do que quer, e a visão da outra parte esteja obscurecida pela tristeza decorrente de uma grave decepção”, completou.
No caso analisado, a ex-esposa teve a confiança no cônjuge abalada pela descoberta de um caso extraconjugal antigo e que teria originado um filho. “Ora, a dor que sentia a recorrente é óbvia. A descoberta de uma relação extraconjugal, com filho, num casamento de tantos anos retira da pessoa a serenidade necessária para decidir sobre as relações patrimoniais decorrentes da separação”, afirmou a ministra.
“É natural que uma pessoa em tal situação anseie pela solução rápida da questão e que, por isso, torne-se mais frágil, ampliando sobremaneira o campo para possível lesão de seus interesses na partilha. Esse é um dos motivos pelos quais se possibilita ao Judiciário o controle prévio e perfunctório de tal ato”, arrematou.
Segundo a relatora, a desproporção entre o patrimônio destinado a cada um dos cônjuges era evidente e grande. Todos os bens comuns que não foram sonegados foram destinados ao ex-marido. A compensação da autora consistiria em pagamentos mensais por tempo limitado, sem qualquer garantia acessória, e na promessa de aquisição de um imóvel. Este nem chegou a ser comprado, tendo o ex-marido ofertado o pagamento do valor acertado inicialmente corrigido monetariamente, “como se a simples entrega do dinheiro, mais a correção monetária, compensasse a notória valorização imobiliária ocorrida nos imóveis da capital federal no período”, afirma a ministra.
Cotas sociais
Além disso, o ex-cônjuge procurou demonstrar a equivalência dos patrimônios divididos com base no valor das cotas sociais das empresas, segundo a ministra Nancy Andrighi, de forma claramente equivocada. “De todos os elementos que se pode tomar para a avaliação de uma sociedade, o que possibilita os maiores equívocos é a mera análise fria de seu capital social dividido pelo número de cotas”, afirmou.
“A demonstração que o recorrido procura fazer, de que a partilha foi equânime mediante esse processo de avaliação, ao contrário de demonstrar a justiça da partilha que se visa anular, apenas reforça a ideia de que ele agiu com dolo ao propô-la”, completou. Segundo a relatora, a avaliação do patrimônio das empresas, principalmente se considerar que algumas delas são “holdings”, é essencial no processo decisório quanto à partilha.
“O mesmo expediente utilizado para convencer a recorrente a aceitar uma partilha lesiva é repetido pelo recorrido aqui, para convencer o Poder Judiciário de que tal partilha foi justa. Esse expediente não pode mais prevalecer”, decidiu a ministra.
retirado do site do STJ
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