quarta-feira, 4 de julho de 2012

Famílias Pobres e Crianças em Instituições de Internato

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
MAIORIDADE X MATURIDADE

Ivone Ferreira Caetano
Juiz Titular da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90), no dia 13 de julho, completará 18 anos de vigência, com o reconhecimento por ser uma das leis mais progressistas do nosso país. Suas regras foram ditadas pela evolução social, que levou a mudanças no tratamento de crianças e adolescentes, com o surgimento da Doutrina da Proteção Integral, em substituição à doutrina da situação irregular preconizada no revogado Código de Menores.
Em consonância com a Constituição Federal, passou-se a dar tratamento diferenciado e prioritário a seres humanos em desenvolvimento – crianças e adolescentes –, como sujeitos de direitos, garantidos pelo princípio da prioridade absoluta, com acesso irrestrito e privilegiado à Justiça, com coresponsabilização de todos (família, comunidade, sociedade, Poder Público), igualmente responsáveis pela tutela dos direitos da criança e do adolescente.
Por ser um diploma legal tão progressista, o ECA vem enfrentando críticas e controvérsias em sua interpretação. Uma das questões trazidas refere-se ao critério de aplicação de medidas nos casos em que se abrigam crianças e adolescentes, por previsão do art. 98 cumulado com art. 101, VII do ECA. Pela regra da proteção integral, é indiscutível a necessidade de implementar medidas em socorro das crianças e adolescentes cujos direitos são ameaçados ou violados.
Havendo necessidade, aplica-se a medida protetiva do Abrigo, encaminhando os menores em situação de risco social — por falta ou omissão de seus responsáveis — a instituições que lhes garantam moradia, ainda que provisória.
No Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Abrigo é considerado uma medida de proteção provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para posterior colocação das crianças e adolescentes em família substituta, não implicando privação de liberdade (art. 101, parág. único). Ainda no art. 92, o ECA determina quais são os princípios e critérios que devem orientar esse programa.
Por outro lado, temos instituições que, ao longo dos anos (muitas funcionam há mais de 80 anos), vêm desenvolvendo excelente trabalho, voltado para a população infanto-juvenil carente, atuando em regime especial de educação, diferenciada do Abrigo previsto no art. 101, VII c/c art. 98 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Essas instituições operam na modalidade de ensino integral. Em algumas, as crianças/adolescentes são liberados no fim do dia; em outras, permanecem na entidade durante a semana, retornando aos lares nos fins de semana, feriados e férias.
No Abrigo Virtual da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, encontram-se cadastradas 8 (oito) instituições (algumas, inscritas no Conselho Municipal da Criança e do Adolescente) que atendem dentro dessa modalidade: Educandário Nossa Senhora das Dores, Obra do Berço, Pequena Cruzada de Santa Terezinha do Menino Jesus, Educandário Gonçalves de Araújo (Departamento Feminino e Departamento Masculino), União das Operárias de Jesus, Sociedade Santos Anjos Custódios, Associação das Filhas de Maria Imaculada e Associação Viva Cazuza.
Essas entidades atendem a aproximadamente 500 crianças/adolescentes pertencentes ao segmento excluído de nossa sociedade, garantindo-lhes ensino de qualidade diretamente oferecido pela própria instituição ou por estabelecimento de ensino conveniado, acesso à saúde, a atividades esportivas e lúdicas, bem como iniciação profissionalizante.
Os alunos dessas instituições são oriundos de famílias de baixíssima renda, em regra, monoparentais, tendo como chefe da família a figura feminina. Essas mães, geralmente, são empregadas domésticas (a maioria dormindo no local de trabalho), diaristas, coletoras de sucata, prestadoras de serviço, ou exercem alguma atividade informal, sem renda fixa (os chamados bicos), ou se encontram desempregadas. Possuem pouca escolaridade, auferem baixos salários e geralmente não têm com quem deixar seus filhos no período em que estão trabalhando ou quando saem para procurar trabalho.
Os alunos atendidos se encontram na faixa etária entre 06 meses e 15 anos, variando de acordo com as normas do estabelecimento. Em regra, a matrícula é feita por solicitação da genitora ou responsável e, em algumas, por encaminhamento do Conselho Tutelar.
Todas as instituições aqui citadas trabalham para o fortalecimento dos vínculos familiares, que, salvo eventual exceção, estão preservados e, em muitos casos, são fortíssimos.
É importante assinalar o fato de que o ingresso nessas entidades, geralmente, não ocorre por medidas protetivas aplicadas pela autoridade Judicial – eis que as crianças não foram inseridas por violação a seus direitos, não se encontram nas hipóteses do art. 98 do ECA, e as famílias mantêm, de forma integral, o Poder Familiar.
Conclui-se, pois, que, ao se matricular um filho numa instituição de regime especial de educação, a intenção seja buscar ensino de qualidade em local seguro, com preservação dos direitos constitucionais garantidos às crianças e aos adolescentes para o exercício futuro de cidadania plena; ou seja, para garantir muito daquilo que foi negado aos pais desses infantes.
Ressalte-se que os pais dessas crianças não estão violando os deveres inerentes ao Poder Familiar exercido. Não se justifica, portanto, a tentativa de reintegração familiar ou a ameaça de colocação em família substituta.
Essa afirmação é de extrema importância na medida em que a Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da capital do Rio de Janeiro vem recebendo informações, através de sua equipe, dando conta das pressões e ameaças dirigidas aos responsáveis pelas crianças/adolescentes bem como aos dirigentes das instituições.
Quanto aos dirigentes, exige-se que mudem o regime de atendimento – abrigo nos moldes do ECA ou estabelecimento de ensino como externato.
Algumas entidades estão persistindo a duras penas; outras, em flagrante prejuízo para os menores, ameaçam quedar-se frente a tamanha pressão.
Quanto aos responsáveis pelas crianças/adolescentes, impõe-se a imediata desinstitucionalização, concedendo prazo exíguo para inserção em creches e escolas, como se, num passe de mágica, todos os problemas sociais envolvidos pudessem ser resolvidos.
Esse radicalismo/formalismo na aplicação da lei atinge até mesmo instituições de caráter tão especial, como a Associação Viva Cazuza, voltada ao acolhimento de grupo que, em princípio, estaria despojado de toda e qualquer expectativa, alijado até do processo de vida.
Recebi recentemente carta de dois adolescentes oriundos da Viva Cazuza, explicando as razões pelas quais não desejavam retornar a suas famílias. Segundo eles, essa reintegração familiar forçada se constituiria na negativa de suas esperanças e oportunidades.
A conduta dos formalistas – ao interpretarem rígida e friamente o artigo 98 do ECA – baseia-se no entendimento de que a permanência nas instituições com saída apenas nos fins de semana leva ao rompimento dos vínculos familiares.
Esquecem que, para atender aos princípios que regem os direitos fundamentais previstos na Constituição da República e adotados pela Lei 8.069/90, não basta tão-somente a leitura fria da lei. É mister aplicá-la naquilo
que ela não proíbe, com visão e sensibilidade suficientes para o atendimento e entendimento da Doutrina da Proteção Integral e do Princípio da Prioridade Absoluta do Direito da criança/adolescente em sua plenitude.
Na questão da Infância e Juventude, não é suficiente o conhecimento acadêmico; é preciso mais. É preciso SOFRÊNCIA (misto de sofrimento e vivência – neologismo criado pelo poeta Sérgio Bittencourt e citado por um dos ícones do Direito Menorista, Desembargador Alyrio Cavallieri). Faz-se necessária a experiência do que é viver em um mundo apartado das reais possibilidades que uma sociedade justa pode oferecer; de saber o que significa viver sem o mínimo recurso, ser criado em comunidades carentes, sem segurança, ter de deixar filhos entregues à própria sorte.
Esse alerta é dirigido à sociedade como um todo, co-responsável pela observância dos direitos aqui apontados com a convicção de quem se originou de uma família de onze irmãos, seis dos quais, por imperiosa necessidade, inseridos em internatos. Essas “internações” não ensejaram enfraquecimento dos vínculos familiares; ao contrário, formou-se um grupo unido e fortalecido, a ponto de todos, sem exceção, terem atingido suas metas, cumprindo suas funções com dignidade e auto-estima.
Outra crítica a essas instituições aponta que, nesses locais, as crianças/adolescentes se “coisificam” – perdem sua individualidade por terem de seguir horários e regras rígidas para as atividades propostas, desde o acordar, passando pelos horários de refeições, até a hora de dormir.
A meu ver, até mesmo essas regras se convertem em fatores positivos ao desenvolvimento, eis que necessárias à formação do cidadão, como sujeito de direitos e obrigações.
Não se pode confundir a figura do Abrigo, excepcional e temporário, como previsto no art. 98 c/c 101, VII do ECA – instituição que acolhe crianças/adolescentes abandonadas, órfãos, vítimas de maus-tratos e/ou negligência, para as quais se indica família substituta caso haja impossibilidade de se promover a reintegração familiar – com a figura dessas instituições, onde, além das propostas educacionais desenvolvidas, trabalha-se pelo fortalecimento do núcleo familiar.
Não se pode esquecer que as famílias pobres, pertencentes ao segmento excluído de nossa sociedade têm, também, o direito de sonhar e de lutar para proporcionar uma vida digna para seus filhos.
Diante da dura realidade que enfrentam e da enorme desigualdade social, as instituições em tela surgem como alternativa para essas famílias. As mães se tranqüilizam ao saber que seus filhos estão auferindo, em lugar certo, os direitos que lhes são outorgados, recebendo alimentação adequada, cuidados com a saúde, ensino de qualidade e atividades extracurriculares. Pretender que as instituições ora abordadas se transformem em unidades de atendimento diário é tornar inviável a Proteção Integral, com a qual toda criança ou adolescente devem ser brindados.
Condenar essas entidades à extinção significa matar o ideal de construirmos uma sociedade justa e igualitária.
Não há que falar em rompimento dos vínculos familiares, quando, na realidade, o que essas famílias buscam é melhor qualidade de vida e futuro mais digno para suas crianças/adolescentes inseridas nessas instituições. Essa atitude deve ser interpretada como um ato de amor, de cuidado, e nunca como abandono ou negligência. Tal direito deve ser considerado um exercício de capacidade relativa ao Poder Familiar, pois que exercitam suas competências da mesma forma que o fazem as famílias de alto ou médio poder aquisitivo quando matriculam seus filhos nos chamados Internatos, buscando ensino de melhor qualidade.
Os pais com melhores condições financeiras podem optar pelo modelo de educação dos filhos, escolhendo cursos e colégios, inclusive no exterior, tanto que da Europa nos vem a notícia da Experiência de Lóczy, realizada na Hungria, ressaltando os benefícios trazidos com a educação nos moldes dessas instituições.
Se pesquisarmos na Internet, verificaremos a variedade de colégios particulares funcionando em regime de “internato”, sem que haja qualquer tipo de pressão para mudança de regime ou de desinstitucionalização para
reintegração familiar. O que, para o pobre, é dado como negligência, para o rico, é pura opção.
O ECA, ao preconizar a Doutrina da Proteção Integral, deve ser aplicado como um só direito dirigido a todos, sem distinção de espécie alguma, e não somente aos que se encontram na chamada “situação irregular” ou “categoria de risco”.
Cabe aqui indagar: 1) Onde e com quem ficarão as crianças para que os pais possam exercer atividade laborativa, considerando a escassez de vagas em creches públicas, bem como de escolas em regime integral? 2) O que fazer com o tempo ocioso desses menores? 3) Será melhor que permaneçam nas ruas, sujeitos a todos os tipos de riscos e perigos?
Em resposta a essas perguntas, urge que se reflita sobre a privação de direitos sociais das camadas economicamente desfavorecidas em nossa sociedade.
Se o atendimento em caráter integral deixar de ser prestado àqueles que mais necessitam, haverá, certamente, aumento considerável de menores em situação de risco; crescerá o contingente daqueles que vemos todos os dias nas ruas e nos sinais de trânsito e daqueles invisíveis aos olhos da sociedade, com os quais quase não deparamos (eis que encontrados nos becos e ruelas, muitos, a serviço do tráfico de drogas), mas de existência real e provada através das lentes de dona Vitória, quando voltadas para a Ladeira dos Tabajaras.
Mais uma vez, a sociedade, que se tornou incapaz de garantir direitos amplos e plenos a suas crianças e jovens, pagará a conta por esse fracasso.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completará a “maioridade” (18 anos de vigência) em 13 de julho próximo, embora considerado um marco na garantia dos direitos e na proteção da criança e do adolescente no Brasil, continua sendo alvo de críticas e resistência para sua implantação. Isso se dá porque, para essa efetivação, faz-se necessário um projeto maior, que se refira à mudança na sociedade organizada, para que seja participativa e responsável pela garantia dos direitos preconizados nesse instituto.
As crianças e adolescentes do nosso país – as maiores vítimas do estado de abandono e desesperança em que nos encontramos –, almejam pelo dia em que o jovem ECA seja encarado como um grande instrumento de cidadania, alcançando não só a maioridade como também a fundamental maturidade.

Ivone Ferreira Caetano
Juiz Titular da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital
Em 10/07/2008
Texto disponibilizado no Banco do Conhecimento do TJRJ em 28 de agosto de 2008.

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