terça-feira, 24 de julho de 2012

OS DANOS DA PATERNIDADE SONEGADA

A Constituição consagra o direito de ter pai e mãe. Como princípio. Obra do acaso ou fruto do amor, querendo ou não, o ser humano real começa no ventre materno com sêmen de homem. Se havia amor ou se era instinto, só corpo sem alma, mas aconteceu o outro, ele será filho igualitário aos demais esperados em berço esplêndido, não podendo sofrer discriminação, abuso, retaliação.
Os danos da paternidade sonegada surgem de muitas causas, justificáveis ou não. Às vezes, é o trabalho que afasta; e pode decorrer do amor ferido ou da indiferença adquirida. A questão tormentosa é o precedente do STJ que manda indenizar pela falta de cuidado. No caso, o pai foi condenado a pagar certa quantia a uma filha que se disse vítima de abandono afetivo.
Duas opiniões, publicadas no Globo, uma da juíza Andrea Pachá, em 14 de julho, a outra do advogado Rodrigo Pereira, em 20 de junho, convidam ao debate, contra e a favor. A juíza é categórica: nem toda dor tem cura e nem merece indenização. Então, sugere a mediação como terapia, recriminando a paga pecuniária, pois o dinheiro não compra, como dizia Nelson Rodrigues, “... até amor verdadeiro”.
Todos querem melhorar o mundo. Daí as leis, as políticas públicas. Malgrado, as mazelas da condição humana, inserida na realidade das coisas, retarda o cidadão ideal. O controle legislativo ou jurisprudencial do afeto, máxime no seio das famílias e do parentesco, indica que precisamos ser mais cautelosos perante os desvios da vida moral (hábitos e costumes).
No Brasil contemporâneo, a democracia republicana tende a se intrometer no espaço moral das pessoas como matéria de domínio público. Ora, é tarefa inaceitável a pretensão de controlar certos detalhes da vida comunitária. Quais detalhes? Precisamente esses: afeto, sexo, relações íntimas, usos sociais. Recorde-se o tempo da palmatória e hoje a lei da palmada. Há perdas bem piores em transformar pais e filhos em delatores uns dos outros. Não é difícil imaginar o que evolui nalgumas escolas, mais ocupadas em ensinar denúncias, do que as lições de moral e civismo.
Não descarto ações indenizatórias pontuais. Como severa exceção. As histórias da falta de compromisso, entre pais e filhos, por indiferença ou desamor, não se recompõem com dinheiro. Muito ao contrário, pode até aprofundar o tamanho da dor, fazendo sangrar maior angústia e humilhação. Ao depois, abrir os tribunais para tais conflitos é alargar a fronteira da noção de “bem público”, impulsionando um novo totalitarismo que não vê limites. Para breve, se a moda fluir, as ações de preceito cominatório, acrescidas de dano moral, vão assolar muitas famílias. Dou um exemplo: pedir ao juiz a proibição de orações à mesa, antes das refeições, tudo em nome da liberdade religiosa das crianças. Ou a censura aos pais e babás de contarem historinhas antes de dormir sem prévia autorização de especialistas, atestando que não encerram preconceito de cor, raça, gênero, expressões politicamente incorretas.
Devagar com o andor, o santo é de barro! O STJ e o Supremo têm sido pródigos em belas e memoráveis decisões. No escandir das famílias, porém, diante dos percalços e desatinos, urge julgar à luz de uma hermenêutica crítica, que submete as regras aos preceitos constitucionais, com destaque ao ser como humano de múltiplas carências e à contraprova da realidade que o submete. Nas relações do casal, com ou sem casamento, no trato com os filhos, nascidos em amor ou acidentais, importa cercá-los de algum encobrimento ou sigilo para que a liberdade de amar, sem o peso totalitário da lei, reencontre os elos das afeições quebradas, sabendo que correm o risco de se perder definitivamente.
Concluo com uma certeza: se a força terapêutica do tempo não gerar um novo final para os atos de abandono e sonegação afetiva, as sanções pecuniárias jamais alcançarão o retorno da alegria e muito menos a “cura” das almas aflitas. É evidente que nenhuma lei ou sentença promoverá a paz familiar, em qualquer lugar, pois soberana é a vida, dobrada às contingências e às fragilidades humanas.
Por Jairo Vasconcelos Rodrigues Carmo*

• Foi juiz de Direito no Rio de Janeiro, professor de Direito Civil, titular do 4º Registro de Títulos e Documentos do Município do Rio de Janeiro.
Fonte: Assessoria de Imprensa da Amaerj

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