Por Christiane Reis
Meio-Amor?
Tudo
começou com o toque da campainha. Estava com a filha recém-nascida no colo e
fazíamos um churrasco para comemorar o meu aniversário, o primeiro sem a
presença física de papai, como havia
constatado logo que abri os olhos na manhã daquele dia.
Observei
mamãe no portão da nossa casa com duas pessoas. Fez com que entrassem e eu
imaginei que fossem vendedoras. A conversa estava demorando e, de repente,
mamãe me pediu que entregasse o bebê ao pai e fosse até elas. Ao chegar, ouvi:
Essa é a sua irmã!
Foi
um susto, embora nós já soubéssemos da existência dessa meio-irmã, fruto de um
relacionamento extra-conjugal de papai.
Não sabia o que fazer. Abracei-a. Era meu pai em forma de mulher. Idêntica.
Teste de DNA pra quê? A mais parecida
com ele.
Chegou
ali a procura do homem que não a registrou, não alimentou, não deu amor, nem
colocou no colo. Foi em busca de um pai. Do meu, do nosso. Ele já não estava
mais entre nós há alguns meses, feliz ou infelizmente. Não sei qual seria a
reação da família diante do ato adúltero, de forma tão explícita. Era a traição
em forma de filha.
Minha
outra irmã não estava em casa. Quando abriu o portão para entrar com o carro,
fui até ela, deixando a filha recém-nascida no colo da irmã recém-nascida (para
mim), mamãe, e uma tia da moça. Antes que entrasse, ainda na rua, contei com
poucas palavras o que estava acontecendo. Ela se sentou no meio-fio e chorou,
um tanto indignada com a situação.
As
apresentações foram feitas. Não sabíamos ao certo o que pensar, mas esperávamos
o melhor. A avó e as primas foram chamadas, pois moravam perto da nossa casa.
Então, em poucas horas, alguém entrou em nossa família. Isso normalmente demora
nove meses para acontecer, mas para nossa nova irmã o tempo esperado foi de
vinte e nove anos.
Minha
mãe... Que ser humano! Recebeu a filha do marido morto como sua, parte dele,
visita inusitada que o trazia de volta. Veio com a cor morena de índio, os
cabelos negros, o formato do corpo e, para espanto nosso, o jeito daquele com
quem nunca conviveu.
Ele
falava nela quando bebia e as barreiras da censura eram derrubadas pelo álcool.
Eu pedia que parasse, pois mamãe podia ouvir e não queria vê-la magoada. Sem
dúvida, sofria por não poder agir com ela da mesma forma que conosco. Era um
pai carinhoso, abraçava, beijava e dizia que nos amava o tempo todo. Imagino
sua dor, ao arcar com as consequências dos deslizes cometidos, dos erros não
reparados.
Estávamos
em novembro. Ela e o marido, pouco mais de um mês depois, vieram passar o Natal
conosco. Buscava família e encontrou. Era apresentada a cada um dos nossos
amigos e parentes. Mamãe sempre com a cabeça erguida, mostrando a filha de
papai. Como ela conseguiu? Lembro que não escondeu. Hoje, treze anos passados,
ninguém se espanta mais. Acabou a novidade e as pessoas devem ter parado de
comentar.
Nasceu
minha sobrinha. Somos padrinhos da menina e mamãe a consagrou. A comemoração do
batizado foi em nossa casa. A avó verdadeira eu nunca vi, mas sei que não se
dão bem e minha irmã mais nova foi mesmo criada pela tia. Teve uma vida
difícil, estudou pouco e nossas afinidades quase não existem. Permanece o laço
de sangue.
A
situação é difícil... Alguém cai de para-quedas em sua vida. Vocês não têm uma
história, amigos, assuntos em comum. Só o pai. Basta? E o amor, por que não
veio no mesmo embrulho? Não poderia ser instantâneo, à primeira vista, ao
abraço inaugural. Não acontece assim, mas deveria.
Amanhã
iremos nos reunir no apartamento da mamãe. Um almoço para celebrarmos
antecipadamente o Natal, pois vai haver uma festa na rua onde mora minha
meio-irmã, com a chegada do Papai Noel, então
nossa sobrinha-afilhada preferiu ficar lá, com os amiguinhos. Natural
que seja assim.
Preferimos
ficar ao lado das pessoas mais próximas, com quem temos uma intimidade maior.
Essa intimidade também não nasceu entre nós, por faltarem os liames básicos, as
longas conversas, as risadas espontâneas ao longo de uma história que se cria a cada encontro. Faltam-nos,
pois, as afinidades. Sem elas, relacionamentos verdadeiros não existem.
Gostaria
que fosse diferente. Escolheria, se pudesse, ter amado essa irmã desde o
primeiro dia, mas o que existe é um gostar, carinho, afeição, cumplicidade no
sentido de que se precisarmos uma da outra, sabemos poder contar, mas pra mim
isso ainda é pouco. Amaria intensamente, se pudesse, como a irmã criada comigo,
os primos e os amigos de longa data.
Como
não costumo desistir de ninguém, espero que ao longo dos anos - e com uma
vontade maior - o laço de sangue faça também valer sua força e germine esse
sentimento que deveria ter sido herdado, recebido geneticamente, transmitido
como tantas outras características, do nosso - preciso lembrar que o pronome
correto é esse, não “meu” - pai. Para isso, é preciso
confiar no tempo ou deixar que tudo se mantenha como está: morno, um meio-amor
entre meio-irmãs.
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