sábado, 26 de janeiro de 2013

A felicidade não é um direito



Andréa Pachá: “A felicidade não é um direito”
Em livro, juíza reúne dramas das famílias brasileiras
MAURÍCIO MEIRELES

A juíza Andréa Pachá tem 15 anos de experiência na Vara da Família (Foto: Divulgação)
















As famílias mudam, o amor acaba, os filhos sofrem. Às vezes o fim é tão tempestuoso que parece roteiro de cinema. A juíza titular da 4ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, Andréa Pachá percebeu isso. Depois de 15 anos trabalhando em varas de família, a ex-conselheira do Conselho Nacional de Justiça viu histórias de casais sofrendo ao deparar com o fim do amor. Também assistiu de sua cadeira as mudanças na família brasileira. Um dia, resolveu contar no seu Facebook – preservando as identidades – as histórias mais comoventes, engraçadas ou revoltantes. Foi um sucesso. Apareceram mensagens do Brasil inteiro de pessoas identificadas com os dramas. Agora essas histórias foram reunidas no livro A vida não é justa (Agir, 190 páginas, R$ 29,90), no momento sendo adaptado para uma série de TV ainda sem previsão de lançamento. Entre os casos, estão o casal que procurou a Justiça para decidir a escola do filho, o amigo que virou pai na prática lutando para não perder a guarda do menino e a mãe que se livrou da depressão tentando reaver as três crianças. Testemunha privilegiada de pelo menos 18 mil audiências sobre questões familiares, Andréa Pachá conseguiu selecionar para o livro 33 casos, num resumo bem contado de cenas dramáticas e, ao mesmo tempo, universais. "Viver na corda bamba é da condição humana, e isso a Justiça não pode resolver", disse, durante a entrevista que você confere abaixo. 

 
ÉPOCA – Por que a senhora resolveu compartilhar essas histórias? 
Andréa Pachá –
 Comecei a trabalhar em varas de família há 18 anos e sempre achei que aquelas histórias precisavam ser contadas. Acompanhava as audiências lamentando não poder registrar aquilo com uma câmera, já que tudo corre em segredo de Justiça. Elas eram tão densas, que no começo jamais pensei que a escrita pudesse dar conta da dimensão delas. Com todo esse tempo de carreira, comecei a notar uma repetição dos dramas porque é o jeito como as pessoas reagem ao deparar com o fim do amor. O legal dessas histórias é ver que a angústia não é só sua. Vivemos a dor individualmente, mas ela não é nossa exclusividade. Muitos dos personagens usam a audiência para dividir seu momento de dor. 
ÉPOCA – Ao se posicionar sobre algumas histórias, a senhora não ia além do papel de um juiz?
Pachá – Não sei exatamente. Eu sei que a função do juiz é solucionar conflitos. Minha experiência na Vara de Família mostra o Estado tentando devolver às partes a capacidade de resolver seus problemas. Não acho correto o Estado interferir na esfera privada se as pessoas têm capacidade para isso. Mas ocorre muitas vezes o contrário, uma terceirização de responsabilidades pessoais, como o caso dos pais que procuraram a Justiça para escolher a escola do filho. Outro ponto, na Vara de Família, são as pessoas que chegam com a angústia do fim do amor. Elas sempre saem da audiência com a sensação de que não foi feita justiça, o que faz sentido porque a solução desses problemas não é judicial. Não há juiz no mundo que possa arbitrar sobre o fim do amor. Este é um conflito que, com o tempo, o casal vai resolver. Por isso o título do livro: A vida não é justa. Não é justa mesmo. A expectativa de que um juiz vai reparar a dor que você sente no fim de uma relação é uma mentira.
ÉPOCA — Nas histórias do livro, a impressão é que muitos casais usam o conflito judicial para continuar perto um do outro.
Pachá – 
Exato. É como se o conflito fosse a única possibilidade de encontro. Isso acontece muito. Vários casais recusam uma solução consensual para o divórcio por achar que, na Vara de Família, o amor vai voltar. Como desculpa para a briga, entram o patrimônio, os filhos. Engraçado como esses dramas dialogam com o leitor. Quando comecei a publicar no Facebook, os textos se espalharam. Comecei a receber emails de outros Estados. Pessoas dizendo que a história que eu havia escrito era a história do seu divórcio. Natural. Os enredos se repetem. Mesmo assim, foi uma surpresa ver que extrapolaram o mundo do Direito.

ÉPOCA – O que mudou nas relações familiares no Brasil?
Pachá –
 Assim que virei juíza, em 1994, a Constituição era muito recente. Foi uma avalanche de pedidos de reconhecimento de paternidade porque antes um pai não podia registrar um filho fora do casamento. O Estado parou de proteger o casamento fechado, vertical, machista. E passou a defender a dignidade. Hoje as relações homoafetivas são um fato. A paternidade socioafetiva – quando a Justiça reconhece a paternidade de alguém que não é o pai biológico – também é cada vez mais comum. Mas também tenho a impressão de que os adolescentes engravidam de uma maneira muito maior do que eu percebia antes. Como eles não costumam estar preparados, são os avós ou pais que assumem a responsabilidade. O amadurecimento vem cada dia mais tarde. Minha impressão é que, enquanto a liberdade avançou, mais pessoas perderam a capacidade de andar com as próprias pernas. Não é à toa que muitos jovens vivem na casa dos pais até bem tarde. O juiz hoje precisa se adaptar e olhar sem preconceito para essas novas composições.
ÉPOCA – O que mais fragiliza as relações familiares?
Pachá –
 Vivemos em um momento de massificação e consumo tão exagerados que as próprias relações viraram objeto de consumo. É como se o outro não fosse igual a você na hora de criar um vínculo e ter um projeto de vida em comum – o que era um princípio do casamento, em tese pautado pelo amor. O outro virou um mero objeto de satisfação. As separações aumentam. Claro que foi bom desburocratizar o divórcio, eu comemorei. Mas há ocasiões em que o tempo é o melhor conselheiro para os conflitos. Não é na primeira intransigência que você vai ao cartório e se divorcia. Hoje há um divórcio fast-food para uma sociedade fast-food. Acredito que é preciso reencontrar em nossa vida os valores humanos. Por que vivemos juntos, em sociedade? É impossível viver junto sem tolerância e compreensão. E estamos desaprendendo a viver assim. Quando você estabelece que seu objetivo de vida é o seu prazer, você perde o olhar para quem está perto. Aí fica impossível viver junto. Não podemos nos ocupar só do nosso desejo.

ÉPOCA – Como ficam os filhos em meio às relações complicadas?
Pachá – 
Essa é a grande preocupação do Judiciário. Os filhos também viraram um projeto de consumo. Uma vez falei para um casal jovem: “Vocês achavam que ter filho era igual às revistas?” O padrão imposto pelo consumo mostra todo mundo saindo da sala de parto sorridente e maquiado. Esses casais jovens querem brincar de casinha. Idealizam o relacionamento como se acordassem todo dia com trilha sonora. Criança só aprende se alguém ensinar limites e valores construídos pela civilização. Como criar um adulto autônomo sem essas referências? É muito triste quando uma criança passa a infância na Justiça por imaturidade dos pais, que a disputam como um objeto. Quando se vê, ela chegou aos 18 anos e o tempo da infância e da adolescência se foi. Nenhuma reparação pode ser feita, embora alguns filhos tentem.

ÉPOCA – Os filhos também vão à Justiça em busca de reparação dessa relação interrompida?
Pachá –
 Sim, acontece. Mas as reclamações sempre envolvem o patrimônio, porque é isso que os filhos aprendem em casa. É como se o afeto pudesse ser compensado com dinheiro. Eu não alimento esse tipo de decisão judicial, porque afeto não se remunera. Acredito que alguns desamparos são estruturantes na nossa formação. Todo ser humano é sozinho. Não é culpa de ninguém que você se sinta abandonado. Você precisa lidar com isso. É uma forma de crescer como adulto que sabe seus limites e ansiedades. Viver na corda bamba é da condição humana. A felicidade não é um direito, muito menos uma obrigação. Compreender nossa humanidade nos faz mais responsáveis pelo nosso destino. Essas indenizações por abandono não reparam nada. Acho que elas alimentam a percepção de que com dinheiro tudo pode ser resolvido. As pessoas acham, como Nelson Rodrigues, que dinheiro compra tudo – até amor verdadeiro.
ÉPOCA – É verdade que a maior parte das separações não consensuais é feita pelas mulheres?
Pachá –
 Em uma das histórias eu trato desse assunto. Quando a mulher deixa de amar, ela pede a separação. É muito difícil ela empurrar um casamento com a barriga. Poucas vezes vi um homem terminar porque deixou de amar. Ele, normalmente, se separa para viver com outra. Ou porque a mulher não o agüenta mais. Isso faz parte da cultura do amor romântico. A mulher não consegue viver um relacionamento sem amor. Para o homem, é diferente. O casamento é uma questão prática.
ÉPOCA – É mais difícil então para a mulher viver o fim do amor?
Pachá –
 Sim. Quando ela deixa de ser amada, sofre muito. Já vi uma mulher se humilhar por ciúmes em uma audiência. Até um texto do Roland Barthes [intelectual francês] eu li para ela, sobre o assunto. Mas é interessante ver esses conflitos tão em carne viva. Nesses anos todos, não houve um dia em que eu tenha saído desanimada de casa.

ÉPOCA – Há algo em comum nessas histórias?
Pachá –
 Muito. Quem ainda ama costuma achar que é possível manter a relação com o amor que só ela sente. É como se a pessoa tivesse condições de amar pelos dois. Só que não tem jeito. Quem não ama não ama. É duro lidar com isso, porque não depende de você. Ninguém escolhe o momento em que o amor acabar e, culturalmente, não nos preparamos para quando o fim chega. Nossa cultura é a do amor romântico, em que só a morte é o ponto final. Por isso, quando o amor acaba há uma dose de culpa, medo de ter errado. Depois vem a angústia de tentar manter a relação. Todas essas histórias com finais tristes tiveram começos felizes. Se você pergunta para um casal quando eles se apaixonaram, os dois se lembram do coração pulando. Mas nenhum consegue ver quando chega o fim. Não há algo como “Meio dia, do dia 10 de janeiro, eu deixei de amar.”
ÉPOCA – A senhora é casada? Depois de ver todas essas histórias, ainda consegue acreditar no casamento?
Pachá –
 Sou casada há quase 20 anos! (risos) Tenho dois filhos. Sou otimista em relação ao ser humano. As relações que vivemos, mesmo quando acabam, são verdadeiras. Quanto menos se idealiza um relacionamento, mais feliz se consegue ser. Penso que o bom do casamento é aquele amor pedestre, compreensivo. Não tem trilha sonora ou café na cama. Às vezes, as pessoas acordam de mau humor ou a casa fica desarrumada. Os conflitos existem. Se por um lado os divórcios cresceram, por outro também aumentou o número de casamentos – formais e informais. Faz parte da nossa condição buscar alguém para compartilhar a vida.

do site da revista época

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