quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Os efeitos do abandono para o desenvolvimento psicológico de bebês e a maternagem como fator de proteção

Estud. psicol. (Campinas) vol.21 no.3 Campinas Sept./Dec. 2004

 

The abandonment effects for the babies's Psychological development and the mothely care as a protection factor


Elisângela BöingI; Maria Aparecida CrepaldiII
IResidente, Curso de Especialização em Saúde da Família/ Modalidade Residência, Centro de Ciências da Saúde, Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Universitário, Trindade, 88940-000, Florianópolis, SC, Brasil. Correspondência para/Correspondence to: E. BÖING
IICurso de graduação de Psicologia e Pós-Graduação de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil




RESUMO
O objetivo deste artigo é descrever o trabalho de maternagem realizado com bebês deixados para adoção em uma maternidade. Rejeição, doença ou morte e pobreza da mãe/família apresentam-se como determinantes da entrega de um bebê para os cuidados institucionais. Vários estudos apontam os efeitos nocivos sobre a formação das crianças quando observadas num processo de separação dos pais e, em especial, da mãe. Essas crianças requerem assistência especializada para minimizar, tanto quanto possível, o prejuízo psíquico decorrente do abandono. Com base nos estudos que abordam essa temática, o serviço de psicologia dessa maternidade realiza com esses bebês a maternagem, objetivando suprir a carência de cuidados maternos e intervir através da palavra e do contato com o bebê. Longas rupturas com pessoas significativas e institucionalização prolongada agem como importantes fatores de risco para o desenvolvimento normativo da criança. A maternagem atua como fator de proteção para o desenvolvimento do bebê abandonado, promovendo saúde mental.
Palavras-chave: comportamento materno infantil; bebês; separação mãe-bebê; desenvolvimento psicológico; fatores de risco; fatores de proteção.

ABSTRACT
The purpose of this article is to describe the motherly care process carried out with babies who were let at the Maternity foster care service. Rejection, disease, death and poverty can be presented as the determinants for living the babies at the institutional care service by mothers and families. Several studies point out the harmful effects on the children's development when they are observed during the separation processes from the parents and, specially, from their mothers. These children require specialized assistance to minimize, as much as possible, the abandonment psychological consequences. Based on the studies that deal with this subject, the Maternity Psychological Service practices the motherly care with these babies, in order to supply the mother care privation using the influence of interaction through speech and hold held contact. Significant people long absences and an extended institutionalization period bring against the child development. The motherly care acts as a protection factor for the abandoned baby development, promoting mental health.
Key-words: maternal behavior (human), infants, holding, mother-baby separation, psychological development, risk factors, protection factors.



O objetivo do presente artigo é descrever o trabalho realizado pelo serviço de psicologia na maternidade do hospital da Universidade Federal de Santa Catarina junto aos bebês abandonados e encaminhados para a adoção.
Ao nascer, o bebê é um ser indefeso e incapaz de sobreviver por meio de seus próprios recursos; o que lhe falta deve ser compensado e fornecido por um adulto cuidador. Para além dos cuidados de alimentação e higiene, vários autores ressaltam a necessidade do bebê de um contato afetivo contínuo advindo de uma figura constante - a mãe ou um cuidador substituto competente - com a qual estabelecerá relações de apego que vêm assegurar e favorecer seu desenvolvimento biopsicoafetivo (Spitz, 1979; Bowlby, 1984; Goldstein, Freud & Solnit, 1987; Bowlby, 1988; 1989; Winnicott, 1993; Szejer, 1999).
Por cuidador competente entende-se o indivíduo capaz de decifrar os sinais que a criança emite para então atendê-la nas suas necessidades desenvolvimentais (Santos da Silva, 2003).

O papel do vínculo afetivo no desenvolvimento do bebê

Spitz (1979, p.99) ressalta a importância do afeto na relação mãe-filho no aparecimento e desenvolvimento da consciência do bebê e a participação vital que a mãe tem ao criar um "clima emocional favorável", sob todos os aspectos, ao desenvolvimento da criança. Segundo o autor, são os sentimentos maternos que criam esse clima emocional que confere ao bebê uma variedade de experiências vitais muito importantes por estarem "interligadas, enriquecidas e caracterizadas pelo afeto materno". Tais experiências são essenciais na infância, pois, nesse período, os afetos são de altíssima relevância, maior do que em qualquer outro período posterior da vida, visto que, do ponto de vista psicológico, grande parte dos aparelhos sensório, perceptivo e de discriminação sensorial ainda não amadureceu; como conseqüência, a atitude emocional da mãe serve para orientar os afetos do bebê e conferir qualidade de vida à sua experiência.

A abordagem etológica do estudo do recém-nascido propõe que a criança vem ao mundo com os equipamentos sensorial, motor e de comunicação perfeitamente adaptados para a sobrevivência nas condições da espécie. Sua sobrevivência depende da proteção, atenção e cuidados prestados pelo adulto; nesse sentido, a relação de apego desempenha a função de garantir o recebimento desses cuidados. Baseado nessa abordagem e na teoria da evolução e da psicologia cognitiva, Bowlby (1989) desenvolveu a teoria do apego, que postula a existência de uma organização psicológica interna situada no sistema nervoso central, responsável pela formação e manutenção dos laços emocionais íntimos entre indivíduos. A propensão para estabelecer tais laços é considerada um componente básico da natureza humana, encontrando-se presente no neonato em forma germinal, e continuando na vida adulta e velhice, quando os primeiros laços persistem e são complementados por novos.
Além do motivo primordial de sobrevivência, Bowlby (1989) ressalta a influência no desenvolvimento da criança, em termos de saúde mental, da maneira como a criança é tratada por seus pais - sobretudo pelo cuidador principal que, em sociedades ocidentais, geralmente é a mãe.
A vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe ou mãe substituta perma-nente, ou seja, uma pessoa que desempenha, regular e constantemente, o papel de mãe, mostra-se essencial à saúde mental do bebê. É essa relação complexa, rica e compensadora com a mãe, nos primeiros anos de vida, enriquecida de inúmeras maneiras pelas relações com o pai e familiares, que a comunidade científica julga estar na base do desenvolvimento da personalidade e saúde mental (Bowlby, 1988).
Quando a criança é privada desse tipo de relação, sofre uma série de efeitos prejudiciais descritos por Bowlby (1988) de acordo com o grau de privação. A privação parcial pode gerar angústia, exagerada necessidade de amor; fortes sentimentos de vingança e, conseqüentemente, culpa e depressão. Como a criança pequena não sabe lidar com estas emoções, sua forma de reação a tais perturbações poderá resultar em distúrbios nervosos, em uma personalidade instável. A privação quase que total, observada, por vezes, em instituições de abrigos, creches, hospitais, aumenta a severidade dos danos no desenvolvimento psicoafetivo, denominada "hospitalismo"; sendo que a privação total, por sua vez, pode aniquilar a capacidade da criança de estabelecer relações futuras com outras pessoas.
Cabe lembrar o trabalho pioneiro de Spitz (1945), que comparou o desenvolvimento psicoafetivo de duas populações de crianças: filhos de mães delinqüentes em uma instituição penitenciária onde cada mãe, apesar de sua patologia, cuidava do filho durante o dia com o auxílio de uma enfermeira competente; e crianças criadas em orfanatos que recebiam cuidados de higiene e alimentação adequados, porém carecendo de qualquer contato humano caloroso durante grande parte do dia. Nesse estudo, observou-se a reação de "hospitalismo" na segunda população, aparecendo na primeira apenas após uma separação da mãe.
Lebovici (1987) afirma que a interação mãe-bebê - processo ao longo do qual a mãe entra em comunicação com o bebê, enviando-lhe certas "mensagens", enquanto que este responde a ela de acordo com seus próprios meios - funciona como protótipo primitivo para todas as relações ulteriores desse bebê.
Em uma revisão sobre as evidências relativas às influências adversas do cuidado materno inadequado durante a primeira infância no desenvolvimento da personalidade, Bowlby (1988) aponta estudos que apresentaram correlações consistentes entre a carência de um vínculo afetuoso saudável na infância e a delinqüência juvenil.
Outros autores, como Rutter (1971) e Zannon (1981), consideram outros fatores, aliados à separação da mãe, responsáveis pelo estresse e pelo prejuízo do desenvolvimento, como: a qualidade das relações anteriores com a família, a idade da criança, condições de estimulação ambiental e a qualidade do cuidado dispensado a ela durante o período de separação. Os autores ressaltam, também, que não se pode visualizar a separação apenas do ponto de vista da "díade mãe-criança", mas é importante considerar a interação da criança com outros membros da família.
Assim, pode-se dizer que a separação não é, em si, necessariamente, um fator a perturbar o desenvolvimento da criança, mas a separação aliada à ausência de condições favorecedoras do seu desenvolvimento, como descrito por Rutter e Zannon.
O abandono como fator de risco para o desenvolvimento
A definição de fatores de risco para o desenvolvimento inclui a dinâmica de interação de condições biológicas e ambientais que impedem o pleno desenvolvimento da criança (Sameroff & Chandler, 1975; Werner, 1986; Lewis, Dlugokinski, Caputo & Griffin, 1988; Bradley & Casey, 1992; Horowitz, 1992; Cicchetti & Garmezy, 1993; Laucht, Esser & Schmidt, 1997).
Albee (1982; 1984) ressalta que a noção de risco assim como a noção de proteção devem ser compreendidas segundo uma interação dos fatores da criança, da família nuclear e do ambiente mais amplo; enfatizando a separação das noções de risco, que deve ser reduzido, e de proteção, que deve ser aumentado. Nesse sentido, deve-se identificar os fatores de proteção e delimitar os mecanismos protetores que servirão como estratégias úteis de prevenção e intervenção remediativa frente aos eventos adversos. Assim, ao reduzir o impacto do risco, abrem-se oportunidades para o desenvolvimento (Rutter, 1987).
Em estudo longitudinal, Werner (1986) ressalta os efeitos positivos da qualidade da interação mãe-bebê para o desenvolvimento de crianças que sofreram risco perinatal, no sentido que a qualidade desse vínculo precoce potencializa a capacidade de resiliência dessas crianças. Entende-se por resiliência as diferenças individuais nas respostas das pessoas ao estresse e à adversidade que funcionam como fatores de proteção, seria, portanto, a capacidade de lidar adequadamente com as adversidades tirando delas proveito para o desenvolvimento (Rutter (1987). Os resultados do referido estudo vêm apoiar empiricamente o modelo transacional de desenvolvimento humano, que leva em consideração a bidirecionalidade da criança - efeitos do cuidador (Sameroff & Chandler, 1975; Bradley & Casey, 1992), considerando o balanço entre os fatores de risco de eventos estressantes na vida e fatores de proteção na criança e no ambiente cuidador que resultará na sua boa ou má adaptação.
Considerando a relevância do cuidado afetuoso contínuo por parte de uma figura constante que favoreça e proteja o desenvolvimento do bebê, com a qual ele estabeleça uma relação de apego, como pensar a condição de bebês abandonados e/ou entregues aos cuidados institucionais?
De acordo com Frassão (2000), o abandono de bebês e crianças caracteriza-se como um sintoma social, geralmente observado em famílias monoparentais, nas quais a pobreza se apresenta como um dos determinantes da entrega de crianças para os cuidados institucionais.
Estudos apontam os efeitos nocivos sobre a formação da criança quando observada num processo de separação dos pais e, em especial, da mãe (Spitz, 1979; Bowlby, 1988; Winnicott, 1993).
Bowlby (1984, p.23) descreve três estados da reação à separação manifestados pela criança: protesto intenso, seguido de desespero e desligamento. A ausência de cuidados maternos da própria mãe ou de uma substituta capaz, aliada a pessoas e eventos estranhos, conduz "à tristeza, à raiva e à angústia nas crianças com mais de dois anos de idade, bem como a reações comparáveis, embora não tão diferenciadas, nas crianças com menos de dois anos".
Goldstein, Freud e Solnit (1987, p.24), no trabalho com crianças que passam pela descontinuidade das relações, como aquelas que esperam pela adoção, descrevem os efeitos da separação até os 18 meses. Para os bebês, a mudança do cuidador "afeta o curso do seu desenvolvimento emocional", as alterações do familiar para o não familiar " causam desconforto, sofrimento, atraso na orientação do bebê e na sua adaptação ao meio". Ressaltam, ainda, as conseqüências a longo prazo, no sentido de que as ligações emocionais destas crianças "se tornam cada vez mais superficiais e indiscriminadas. Elas tendem a crescer como pessoas que não têm calor em seus contatos com seus semelhantes".
A intervenção junto aos bebês abandonados
Segundo Szejer (1994), o sofrimento, no sentido psicanalítico do termo, é um "sofrimento de palavra". Seja ele do corpo ou da mente, é sempre sofrimento simbólico e a necessidade da palavra enunciada se mostra tão real que, se não for satisfeita, o corpo pode ser afetado na sua integridade, ou seja, esse sofrimento pode se expressar através de sintomas. Anna Freud, Winnicott, Melanie Klein e seus sucessores estudaram e adaptaram a prática psicanalítica a crianças cada vez menores. Nessa direção, seguindo os passos de Françoise Dolto, que, pioneiramente, desenvolveu sua prática psicanalítica a partir do efeito da "palavra verdadeira" sobre os bebês, qualquer fosse a sua idade ou seu estado, Myriam Szejer deu início a seu trabalho e pesquisas com bebês em maternidades.
De acordo com Szejer (1994), quando uma palavra intimamente relacionada ao recém-nascido lhe é dirigida, define para ele seu lugar dentre os dados conflitantes de sua história. Sua hipótese consiste em imaginar que os efeitos desta palavra, permitindo-lhe memorizar certos elementos, vão ajudá-lo a adquirir referenciais necessários à simbolização de seu sofrimento até então encerrado em seu corpo.
Embora essa afirmação sobre o efeito da palavra seja controversa, há outros autores (Eliacheff, apud Szejer, 1994; Mathelin, 1999; Busnel, 1997a; 1997b) que, através da observação e relato de seus trabalhos e estudos com bebês, corroboram esta idéia sem, contudo, desprezar a relevância do afeto na interação com o bebê. Eliacheff, na sua prática de psicanálise com crianças de zero a três anos, afirma que fala diretamente com o bebê, traduzindo em palavras seu sofrimento revelado pelas suas expressões, conta a ele sua história de vida pré- e pós-natal de forma a permitir estabelecer conexões entre os "pontos de ruptura", e afirma, ainda, que o bebê entende o que lhe é dito, pois lhe é falado a respeito das experiências que viveu. Mathelin (1999, p.23) enfatiza o poder da "fala verdadeira" no corpo do bebê, afirmando que para viver o ser humano precisa inscrever-se numa fala; "caso se inscreva numa fala louca, fica louco". A etóloga Busnel (1997a) demonstrou, através de rigorosas experiências, a capacidade do bebê de responder à fala, à voz e ao afeto vinculado à linguagem.
Em que consistiria exatamente esta comunicação cuidador-bebê? Ou ainda, qual seria seu principal componente? Embora os autores supracitados enfatizem a importância da palavra, não se pode afirmar ao certo em que dimensão ela se encontra implicada nesse processo comunicacional, pois se deve considerar o afeto, a disponibilidade, a comunicação gestual, dentre outros fatores, necessários para o estabelecimento do vínculo. Nesse sentido, abre-se aqui a discussão de um campo que necessita ser mais bem pesquisado.
Mathelin (1999, p.44) ressalta a importância dos vários aspectos da comunicação com o bebê: o modo de tocá-lo, de responder ao seu olhar, de "endereçar-se ao bebê, enquanto humano endereçando-se a outro humano, habitado por seus afetos, pensamentos, desejos". Para a autora, é o "endereçamento ao outro, capturado na linguagem, que parece estar, para além das palavras, operando na criança".
Em uma conferência realizada pela Associação Brasileira para o Estudo do Psiquismo Pré e Perinatal (ABREP), Szejer foi questionada se a importância de sua intervenção com bebês estaria na palavra ou na forma como é dita, devendo-se, portanto, ao investimento afetivo. Respondeu, convicta, que o importante são as palavras, o que é dito, uma vez que os efeitos não advêm da voz da mãe, nem do vínculo afetivo, já que este não é estabelecido entre ambos, concluindo, assim, que o que lhes é dito é que produz os efeitos observados. Justificou-se pelo seu trabalho com recém-nascidos abandonados. Contudo, Szejer complementa a questão afirmando: "Eu me considero um ser humano e não posso dispensar o meu investimento afetivo. Como já lhes disse, não se trata de um trabalho científico com comprovações a serem verificadas. Trata-se de uma experiência humana na qual estou implicada com coração e alma, no decorrer da qual faço descobertas. E, se isso for do interesse de mais alguém, tanto melhor" (Szejer, 1997). A autora nos parece controversa, no entanto, quando enfatiza a importância do "investi-mento afetivo", além das palavras.
Por outro lado, Lebovici (1987), em conversas clínicas com mães e seus bebês, observou as diferentes reações do bebê (aparentemente em concordância com os elementos do discurso materno) e não acredita que o bebê seja sensível à significação das palavras da mãe, conferindo importância aos caracteres "prosódicos" do discurso materno, à intensidade sonora, à modulação dessa intensidade à medida que a mãe fala, seu ritmo, seu timbre. Além disso, afirma que outras mensagens podem ser transmitidas ao bebê, inconscientemente, sob a forma de modificação da postura e do tônus da mãe ao pegar o bebê nos braços e das trocas de posições que ela imprime.
Mathelin (1999) cita o trabalho de Masakowski (1996) que demonstrou a sensibilidade dos bebês aos afetos, pois no segundo dia de vida eles reagiam de forma diferente quando suas mães falavam-lhes de modo triste, alegre ou zangado. E, por outro lado, os bebês não reagiam se lhes fizessem ouvir as mesmas falas das mães por intermédio de um gravador que passava a fita ao contrário, o que fez com que os pesquisadores se interrogassem a respeito da capacidade dos bebês de compreender o sentido das palavras. Essa questão permanece ainda hoje um enigma e nada pôde ser comprovado cientificamente.
O que se pode concluir desses estudos é que essa intervenção psicológica se faz especialmente necessária no caso de bebês abandonados ou entregues aos cuidados institucionais, como forma de garantir que, ao menos uma vez, esses bebês ouçam sua verdadeira história, uma vez que o desconhecimento desta, segundo Szejer (1997), deixa "buracos mentais" que podem e são preenchidos muito freqüentemente por sintomas clínicos, por vezes de intensidade letal.
Para os bebês abandonados, o nascimento representa um corte radical em relação a tudo o que eles conhecem: a voz da mãe, os ruídos de seu corpo, a voz do pai, o ambiente familiar, enfim, tudo aquilo que permite a um recém-nascido se situar nos primeiros momentos de sua vida desaparece. "As palavras a ele dirigidas e que darão sentido àquilo que lhe é dado viver" podem promover o vínculo, afirma Szejer,e devem ser ditas ao bebê o mais precocemente possível, após a separação, e a partir de então, "... a criança poderá vir a ocupar seu lugar nessa história tão particular que a precede e a atravessa" (Szejer, 1999, p.43).
A passagem do hospital para a instituição de abrigo representa para o bebê a reatualização do "corte" vivido no nascimento quando fora separado de sua mãe. Quando os vínculos estabelecidos com os membros da equipe do hospital não são simbolizados no momento da transferência para o abrigo, ficam sujeitos a reaparecer sob a forma de sintomas clínicos posteriores (Szejer, 1997).
A partir dessa constatação, originou-se o projeto de assumir essas crianças "não apenas para uma maternagem adaptada mas também para uma acolhida de linguagem", de modo a oferecer-lhes a oportunidade de serem reconectadas à sua história passada, "única a poder dar sentido à projeção de seu futuro" (Szejer, 1997, p.148).
A maternagem realizada na maternidade do HU/UFSC
Com base nos autores que abordam a temática, o serviço de psicologia da maternidade desenvolve um trabalho denominado maternagem, que consiste no acolhimento dos bebês nascidos na instituição e abandonados ou entregues para adoção.
Por se tratar de um hospital-escola, a estagiária de psicologia, orientada por uma professora supervisora e uma psicóloga local, passa a maternar o bebê, tornando-se para ele uma figura constante e de referência até a passagem dos seus cuidados para a mãe adotiva.
O conceito de maternagem pode ser compreendido como o conjunto de cuidados dispensados ao bebê que visa suprir suas necessidades. Essas, por sua vez, são entendidas, segundo as definições de Winnicott (1999a; 1999b) como: necessidade de holding, que significa não apenas o ato de segurar o bebê, mas contê-lo física e emocionalmente; de handling, que diz respeito aos cuidados de manuseio do bebê; e, ainda, de "apresentação do objeto", sendo o próprio cuidador tido como "objeto libidinal" que satisfaz as necessidades do bebê. O cuidador, segundo o autor, deve ter a capacidade de perceber como o bebê está se sentindo, reconhecendo, assim, a sua subjetividade.
Essa maternagem distingue-se da intervenção realizada por Szejer (1997), que, assumindo uma postura psicanalítica, evita o contato afetivo com o bebê, atendo-se à intervenção através da palavra, em respeito à transferência e, quando necessário, após as sessões, ela pede a quem esteja com o mesmo que o embale e o acalme.
Por outro lado, na maternagem a que nos referimos neste artigo, a estagiária de psicologia, numa tentativa de minimizar os efeitos da privação da mãe, acolhe o bebê, interagindo com ele, oferecendo-lhe cuidados de higiene e alimentação e, sobretudo, contato afetivo através do olhar, do toque terno, de cantigas e da palavra. Palavras que vêm conferir sentido a tudo o que o bebê está vivendo, sobre sua origem, seu presente, perspectivas de futuro.
A respeito das conseqüências da ausência dessas palavras, diz Szejer,
... pedir a uma criança que se estruture sobre o não-dito é pedir que renegue uma parte de si mesma. Pois ela sabe muito bem o que vivenciou e, se sua consciência não lhe traz recordação explícita, seu inconsciente virá, através de sintomas inexplicáveis, testemunhar tudo ao longo de sua existência (Szejer, 1997, p.154).
Objetivos do trabalho de maternagem
A maternagem, enquanto intervenção psicológica, visa: a) suprir a carência de cuidados maternos dos bebês abandonados na materni-dade, oferecendo-lhes uma figura constante e de referência; b) estabelecer um vínculo afetivo com esses bebês; c) intervir através da palavra, do afeto, e da disponibilidade do cuidador, contando ao bebê sua história de vida e tudo o que lhe está acontecendo, assim como lhe oferecer perspectivas positivas de futuro; d) acompanhar, ininterruptamente, o bebê desde seu nascimento, seja no próprio hospital ou na instituição de abrigo para a qual seja encaminhado, até a passagem, gradual, para os cuidados da mãe, no lar adotivo.

MÉTODO
Uma vez que esse serviço é oferecido pelo serviço de psicologia da maternidade, ele se inicia com o atendimento psicológico à mãe e/ou familiares presentes que manifestem desejo de entregar seu filho para adoção. É oferecida à mãe a escolha de ter ou não contato com o bebê.
No acompanhamento psicológico à mãe, respeitando o período de descanso após o parto, são abordadas as questões a respeito da decisão da entrega de seu filho para adoção. Investiga-se a rede de apoio de que a mãe dispõe, familiares, amigos, sua condição socioeconômica e sua história de vida como forma de elucidar as razões da decisão do abandono. Verifica-se sua convicção a respeito dessa escolha, jamais a induzindo ou a julgando, mas adotando uma abordagem compreensiva e de apoio emocional a essa mãe, que, sejam quais forem suas razões, no seu íntimo, sofre muito em deixar o filho.
Tão logo quanto possível deve-se iniciar a maternagem com o bebê. Num momento em que ele estiver desperto, a estagiária aproxima-se e apresenta-se. Em local reservado, segurando o bebê e posicionando-o de frente de modo a manter contato visual numa distância de aproximadamente vinte centímetros - distância adequada à acuidade visual do recém-nascido no primeiro mês de vida (Haynes et al., 1965, apud Lebovici, 1987) -, a estagiária fala-lhe a respeito do lugar onde ele está, sobre sua mãe, seus familiares e o motivo da separação, segundo as informações trazidas pela mãe em atendimento prévio. Verbaliza, para o bebê, o sofrimento pelo qual está passando, afirmando, também, que ele não ficará sozinho, que receberá carinho até que "chegue sua nova mãe".
Apesar de seguirmos uma abordagem analítica, sob vários aspectos, não nos preocupamos com princípios psicanalíticos de neutralidade ou de evitar a transferência e/ou contratranferência. Pelo contrário, estabelecemos uma relação afetiva íntima com o bebê e, conseqüentemente, ficamos vulneráveis a aspectos transferenciais por acreditarmos na vital importância dessa vivência afetiva para a saúde mental do bebê. Quanto aos nossos sentimentos transferenciais, trabalhamos com eles, pessoalmente e em supervisão.
Os contatos com o bebê são intensos, de algumas horas, diariamente. O acompanhamento cessa apenas quando a mãe substituta estiver apta a dar continuidade aos cuidados. A passagem para a outra figura cuidadora deve ser gradual, num período anterior e posterior à ida do bebê para o lar adotivo.
Um estudo de caso
Para explicitar os resultados deste trabalho apresentaremos, a seguir, um estudo de caso. Considerando a intimidade implementada entre cuidador e criança, o estudo de caso será relatado na primeira pessoa do singular. Cabe ressaltar que, por motivos éticos, todos os nomes foram devidamente substituídos.
Atendimento psicológico à mãe
Numa manhã de terça-feira, dirigi-me ao quarto 226 da maternidade onde se encontrava Maria. Em seu prontuário, previamente consultado, constava que ela tinha 25 anos de idade e havia dado à luz um menino, quarto filho de sua quarta gestação, e manifestado a intenção de entregá-lo para adoção. Seu bebê recém-nascido encontrava-se na unidade neonatal, visto que nessa maternidade não há berçário e os bebês permanecem ao lado da mãe no alojamento conjunto. Maria não tivera contato com o bebê no momento do nascimento, disse ter assim preferido, pois sentia medo de não conseguir deixá-lo caso o visse.
Ao ser questionada sobre sua família, seus filhos e sua história de vida, contou-me que fora morar com seu companheiro aos 15 anos de idade, o pai de seus quatro filhos, quatro meninos: de dez, sete e três anos de idade e o bebê que acabara de nascer. Nos últimos anos seu marido, que era um "bom homem", segundo suas palavras, começou a beber, e junto da bebida vieram todas as conseqüências que destroem uma família. Maria e os três filhos foram, então, morar com seus pais.
Na casa de seus pais moram ainda alguns irmãos, todos trabalham na lavoura para sustentar a casa, inclusive seus filhos de dez e sete anos de idade, que madrugam para ir para a roça e estudam no período da tarde. Maria não conta com ajuda alguma do pai de seus filhos, por esse motivo, desde quando descobriu a gravidez, decidiu que o iria entregar para adoção, pois não poderia deixar de trabalhar para cuidar do bebê.
Quanto ao posicionamento da família frente a essa decisão, disse que seus pais concordaram, e que seu filho de dez anos lhe dissera: "Se for pra ele ter que trabalhar como a gente, então dá ele, mãe, prá uma família rica, prá ele poder brincar".
Mais tarde retornei ao quarto, Maria ficara de pensar sobre ver o bebê. Decidira não o ver, e falou: "Sei que jamais vou esquecer este pedaço meu, mas não tenho opção".
Perguntei-lhe se tinha vontade de deixar algo para o bebê, como o nome, alertando-a para a opção de não o fazer caso pensar a respeito fosse muito sofrido. Preferiu não pensar. Respeitei sua posição e despedi-me dizendo que voltaria na manhã seguinte antes de sua alta.
Início da maternagem com o bebê
Neste mesmo dia iniciei a maternagem com o bebê. Na sala de psicologia, posicionei-o de frente para meu rosto e apresentei-me a ele como uma amiga, dizendo-lhe, também, meu nome. Pausadamente e em tom suave contei-lhe sua história; que estava no hospital numa sala com outros bebês; que sua mãe estava num outro quarto e que eles não poderiam ficar juntos, que eu sabia que era sofrido para ele ficar longe dela e que sua mãe também estava sofrendo, pois gostava muito dele a ponto de entregá-lo para os cuidados de outra família, por achar que assim ele ficaria melhor.
Falei-lhe dos três irmãos, eram ainda crianças, mas já tinham que trabalhar e para que ele não tivesse uma vida assim, difícil, sua mãe achou melhor entregá-lo para uma outra família, pois "ela acha que você vai ser mais feliz com uma nova família".
Falei-lhe que demoraria um pouco para sua "nova mãe" chegar, mas que ela o desejava muito, e enquanto isso ele não ficaria sozinho, eu e outras pessoas cuidaríamos dele, seria eu quem lhe daria colo e carinho a maior parte do tempo.
De olhos bem abertos o bebê fitava ora meus olhos, ora minha boca, realizando movi-mentos faciais incluindo as sobrancelhas, por vezes, abria e fechava a boca. Ainda com ele nos braços disse que havia escolhido uma cantiga para ele, que eu a cantaria e ficaria com ele até que dormisse e voltaria na manhã seguinte.
Acompanhamento psicológico à mãe na alta hospitalar
Na manhã seguinte, dia da alta hospitalar de Maria, fui ao seu quarto ver como ela estava e fazer algumas orientações.
Por ter comentado que ficara pensando num nome, durante a noite, perguntei-lhe se havia mudado de idéia quanto a isso. Questionou sobre a mudança de nome na adoção e falei-lhe que, infelizmente, isso ocorre às vezes, mas lutaríamos para que seu nome permanecesse, pois isso era muito importante para ele. Maria olhou para sua mãe, disse que queria um nome bonito, citou alguns e escolheram "Gabriel", semelhante ao nome de seus outros três filhos.
Também falei para Maria a respeito do estado de sensibilidade emocional aumentada que a mulher apresenta até algumas semanas depois do parto. E, nessa situação específica, esta talvez se tornasse ainda mais aparente. Disse-lhe que seria importante se observar, conversar sobre seus sentimentos com alguém de confiança e se achasse necessário deveria procurar ajuda. Disse-lhe ainda que teria que saber lidar com as críticas de pessoas que não entendem e não conseguem se colocar no lugar dela; com um leve sorriso, confirmou com a cabeça. Despedi-me dizendo-lhe que poderia nos procurar ou mesmo telefonar quando julgasse necessário.
Seguimento da maternagem com o bebê
Nos dias em que Gabriel permaneceu no hospital, meu contato com ele foi bastante intenso. Eu me fazia presente todos os dias nos períodos das mamadas diurnas. Nesses momentos, além da alimentação, oferecia-lhe cuidados de higiene, conversava com ele, traduzindo em palavras seus prováveis sentimentos, dizia-lhe que seria muito amado pela sua nova mãe e que eu, como sua amiga, já gostava muito dele. Cantava sua cantiga, e dava-lhe bastante colo na "posição canguru", que se tornou sua posição de colo preferida. Nesta posição o bebê é contido verticalmente, de frente, na parte superior do tronco do cuidador.
A reação do bebê à interação
No quinto dia pela manhã, como de costume, fomos para um lugar mais reservado. De olhos bem abertos ele fitava meus olhos. Naquele dia o Gabriel seria transferido, então disse a ele que iria para o lar, lugar do qual já havia lhe falado.
Enquanto eu falava, pela primeira vez ele se mostrou agitado. Começou a se mexer e a chorar. Chorou muito, gritava movimentando bruscamente as pernas, os braços e a cabeça. Ele continuava gritando e chorando quando trouxeram mais 10mL de leite, já havia mamado 60mL, como de costume. Tomou tudo, rapidamente, e continuou a chorar gritando. Continuou nesse estado, ininterruptamente, por quase uma hora.
As pessoas ali presentes foram se afastando, pois um choro assim vai se tornando insuportável. Sentei-me, coloquei-o em "posição canguru", mas ele não se acalmava, fazia movimentos bruscos projetando seu corpo para trás. Nessa mesma posição, com uma mão nas suas costas e a outra segurando de maneira firme e suave sua cabeça, comecei a falar-lhe: "O que foi Gabriel, você não quer ir, é isso? Você está com medo, quer ficar aqui onde você já conhece as pessoas, não quer ir novamente para um lugar estranho, você se sente seguro aqui. Eu sei que é difícil. Mas eu vou junto com você, está tudo bem, eu vou te dar muito carinho e vamos cuidar de você".
Surpreendentemente, enquanto lhe falava, foi se acalmando, e parou de chorar. Então cantei sua cantiga e ele adormeceu. Permanecemos nessa posição por mais uma hora e meia, apesar de estar dormindo, durante todo esse tempo ele ainda suspirava.
Gabriel era um bebê tranqüilo, chorava apenas antes de mamar. Ficamos todos desconcertados com aquele choro, a médica pediu para examiná-lo assim que acordasse, porém, nenhum sintoma clínico foi constatado.
Foi uma reação bastante forte às palavras, não censuro a possível incredibilidade do leitor, confesso que eu mesma quase duvidei, cheguei a pensar em coincidência, lamentei não ter podido filmar todo o episódio para poder analisá--lo criteriosamente. Embora ciente das discussões controversas sobre o tema, busquei a confirmação nas palavras de Szejer:
Quando vou falar com esses bebês, trata-se sempre de uma situação muito perturbadora. Parece que a sua sensibilidade, a sua avidez pela palavra que pronuncio, é imensa. Alguns reagem a cada palavra como se cada uma delas viesse se inscrever em seu corpo. É comum vê-los se contorcendo de dor quando falo de separação; depois sorriem quando falo dos projetos que lhes dizem respeito (1997, p.157).
Trata-se de uma reação às palavras, ao contato afetivo ou a outra mensagem indecifrável? Não podemos afirmar ao certo, o fato é que o bebê sempre respondeu de forma expressiva às intervenções, o que também foi observado em todos os demais casos em que foi realizada a maternagem nesse hospital, levando-nos a crer que se estabeleceu uma comunicação e que alguma mensagem foi passada, de uma maneira ou de outra, dos cuidadores para os bebês e vice-versa.
A intenção neste momento é abrir esta discussão mais do que afirmar a forma mais adequada de se interagir e se estabelecer uma comunicação com o bebê que promova o seu desenvolvimento como um todo, isentando-o das seqüelas do abandono.
Szejer (1997) relata que muitos médicos no hospital onde trabalha requerem provas "científi-cas" de sua prática. Ela afirma não ser possível por não poder se situar no interior e no exterior ao mesmo tempo, e o que se pode contar como prova seriam as melhoras surpreendentes testemunhadas pelos que cuidam das crianças em hospitais e orfanatos.
Mathelin (1999, p.73), em depoimento semelhante, diz que o médico-chefe de sua equipe brinca com ela comparando a psicanálise à feitiçaria e conclui: "como poderia ele não se questionar, já que os efeitos da linguagem escapam a qualquer medida científica quantitativa-mente demonstrável".
Pela impossibilidade de obter uma comprovação científica desse fato é que colocamos em discussão qual seria o fator que provoca tais reações na criança. Seriam as palavras, como afirmam Szejer, Eliacheff, e Mathelin; o estabelecimento do vínculo afetivo, também considerado por Mathelin e enfatizado por Busnel; o tom e o timbre da voz e atitudes posturais inconscientes, como defende Lebovici, ou que outro tipo de mensagem chega até o bebê para que ele responda da forma como foi observado?
Pode-se demonstrar cientificamente o que o bebê recebe, por meio de seus órgãos sensoriais, mas a influência que isso exerce sobre o desenvolvimento do seu pensamento permanece inacessível uma vez que a ciência, até o presente momento, não possui meios de investigação do psiquismo do bebê, o que não quer dizer que este não exista ou não possa ser atingido por estímulo externo (Busnel, 1997b). Acreditamos ser essa a razão da grande maioria das publicações sobre intervenções psicológicas ou psicanalíticas com bebês (Szejer, 1994, 1997; 1999; Mathelin, 1999; Busnel, 1997a, 1997b) ser apresentada na forma de depoimentos e relatos de casos.
A ida para o lar - instituição de abrigo
Os funcionários do juizado não vieram buscá-lo nesse dia, o que me tranqüilizou, pois teria mais tempo para trabalhar com Gabriel a sua ida para o abrigo.
A partir de então passei a observar com cautela o prontuário, com o objetivo de verificar alguma possível ocorrência depois daquela manhã.
No dia seguinte, ao verificar o prontuário observei que Gabriel havia recebido 20mL de leite entre os horários das três mamadas vespertinas, sendo que em cada uma das quatro mamadas noturnas deram-lhe 80mL de leite. Questionei uma enfermeira a respeito da quantidade extra de leite e ela me respondeu que ele estava muito choroso.
Já não havia mais como considerar uma possível coincidência, as palavras ditas a Gabriel a respeito de uma nova separação, ao sair do hospital para um ambiente estranho, desencadearam uma reação peculiar, não apenas pelo episódio da manhã, mas durante todo o dia em que continuou a manifestar um comportamento choroso atípico. É interessante ressaltar que Gabriel chorava e, conseqüentemente, recebia o leite extra, nos períodos em que eu - figura da qual recebia carinho e conforto - não estava presente.
Ao constatar isto, resolvi falar com Gabriel a este respeito. Ao acordar, troquei-o e dei-lhe o leite. Seguindo as mamadas da noite anterior, ele mamou 80mL. Falei-lhe que ele não precisava mamar tanto, não ia lhe fazer bem, que eu entendia que ele estava sofrendo por ter que deixar pessoas e um ambiente que ele já conhecia e se sentia bem, mas que era necessário. Assegurei-lhe de que não ficaria sozinho. Disse-lhe, também, que eu sabia que ele precisava de alguém o tempo todo junto dele, mas que por enquanto não era possível, que teria meu carinho nos horários de costume, mas que logo ele teria sua "nova mãe" que estaria com ele o tempo todo. Ouvia-me atentamente, olhando para meus olhos, sem se movimentar muito, apenas fazia expressões faciais com as sobrancelhas e reflexos de sorriso.
Através do prontuário, constatei que todas as mamadas posteriores neste dia e nos dias seguintes voltaram ao normal. No seu nono dia de vida, pela manhã, falei para Gabriel que iríamos para o lar. Mostrou-se um pouco agitado, permaneci com ele no colo até a chegada dos funcionários do Juizado de Menores, e ele se tranqüilizou. Despedimo-nos da equipe de saúde que também havia cuidado dele e fomos para o lar.
Levei-o em meu colo, ele dormiu logo que entramos no carro. Ao chegar, apresentei-me e apresentei Gabriel para as pessoas que cuidariam dele enquanto ele permanecesse ali. Mostrei-lhe seu quarto, dizendo que eu voltaria no dia seguinte.
Falei para a assistente social da instituição a respeito da maternagem, ela não apenas consentiu minhas visitas como aceitou meu trabalho com visível interesse. Relatei brevemente a história de Gabriel, e fiz algumas recomendações quanto ao leite, ao colo na "posição canguru", que se tornou preferida, e praticamente a única aceita pelo bebê, e, quanto ao berço, que era bastante grande, fiz um "rolinho" com uma coberta e com ele contornei o corpo do bebê para que se sentisse contido e seguro.
A maternagem na instituição de abrigo
Sempre que chegava, chamava-o pelo nome, dizia-lhe que estava ali para ficar um tempo com ele; dava-lhe a mamadeira mantendo contato visual; de olhos bem abertos fitava os meus enquanto eu retomava sua história, sua permanência ali e minha presença enquanto sua "amiga", e sobre sua nova família que estava por vir. Enquanto falava, ele emitia expressões movimentando as sobrancelhas, por vezes sorria. Em "posição canguru" cantava-lhe sua cantiga.
A localização da instituição tornou-se um obstáculo para minha ida diária, visto que eram necessários quatro passes de transporte coletivo, representando um ônus para o hospital. Apesar do empenho e dos esforços do Serviço Social da Maternidade, que solicitou auxílio, em duas ocasiões, do poder público municipal para a obtenção de passes, esses ainda foram insuficientes. Por esses motivos o acompanhamento de Gabriel passou a ser realizado em dias alternados, na última quinzena do primeiro mês; quatro vezes por semana no segundo e apenas duas vezes semanais no terceiro mês, com o objetivo de utilizar os passes por um período maior de tempo, visto que o processo de adoção se arrastava.
Depois de doze dias de acompanhamento diário e contínuo, Gabriel manifestou uma reação bastante forte na minha primeira ausência. Quando retornei, as cuidadoras disseram que no dia anterior ele dormia no máximo por uma hora e acordava chorando muito.
Com Gabriel no colo, em "posição canguru", chorando e gritando copiosamente, caminhei lentamente enquanto lhe falava: "Eu estou aqui com você. Você se sentiu sozinho, não é? (...) eu sei que foi difícil pra você eu não ter vindo ontem, você ficou sem colo, mas por enquanto tem que ser assim, vai ter alguns dias que eu não vou poder vir, (...) é por um tempo, logo você vai ter uma família, uma mãe que vai dar toda a atenção e carinho que você precisa."
Enquanto eu falava, ele foi se acalmando e parou de chorar, cantei-lhe sua cantiga, ele permaneceu em silêncio, de olhos bem abertos, por vezes, suspirava, ficamos assim por mais uma hora quando começou a sugar a mão. Dei-lhe a mamadeira e logo dormiu.
Minhas ausências continuaram sendo bastante significativas para Gabriel. A constatação da visível reação através de continuados e intensos comportamentos de choro a partir do momento em que a maternagem passou a ser realizada em dias alternados, por vezes, angustiou-me. Temia que minha presença e meu carinho tornassem-se imprevisíveis, incertos para ele, o que não era bom. Quanto ao seu choro, apesar de testemunhar seu sofrimento, apresentava-se como uma reação saudável, no sentido de representar um protesto, uma reivindicação do colo e carinho de que necessitava. Ele pedia porque vinha recebendo. Diferente do preocupante "conformismo adaptativo" exibido pelos bebês que "desistem" de pedir - através do choro - e confinam-se silenciosos nos seus berços.
Com o objetivo de minimizar os efeitos da minha ausência, providenciei um "cheirinho" para ele, uma fralda que colocava no meu pescoço enquanto lhe dava colo e depois deixava com ele, uma espécie de "objeto transicional" que lhe confortasse na minha ausência. Este termo "objeto transicional" é definido por Winnicott (apud Bleichmar & Bleichmar, 1992) como um objeto que representa a mãe, ou seja, seu objeto libidinal, e exerce uma função ao nível defensivo vinculado às angústias de separação. Outra providência tomada nesse sentido foi levar para as cuidadoras a cantiga do Gabriel por escrito e fixá-la no seu berço como forma de incentivá-las a cantar, visto que essa, talvez por ter sido cantada para o Gabriel desde seu primeiro dia de vida, tornou-se uma boa referência para ele, que sempre se acalmava ao ouvi-la.
Os dias foram passando, Gabriel permanecia bastante tempo acordado, o que possibilitava uma maior interação minha com ele. No pátio de recreação das crianças, tomávamos banho de sol, conversávamos, mostrava-lhe as árvores, os brinquedos. Gabriel, agora, já sorria com bastante freqüência.
Passou a ser visível para mim e para as cuidadoras o quanto Gabriel demonstrava reconhecer-me, procurando-me com o olhar ao ouvir minha voz. Ao direcionar-me a ele, respondia com o olhar fixo, movimentando os braços e as pernas, sorrindo, e logo começando a choramingar, o que era entendido por mim como pedido de colo.
Elaboramos um documento escrito requerendo a aceleração do processo de adoção junto ao Juizado, e inúmeros contatos telefônicos por parte do Serviço Social da Maternidade e do Abrigo visavam a esse mesmo fim, mas todas essas tentativas pareciam inócuas. A morosidade da justiça fez com que Gabriel completasse seu terceiro mês de vida na instituição de abrigo, à espera de seus pais prometidos, enquanto estes, por sua vez, esperavam-no sem ao menos saber quem ele era e onde estava.
O encontro de Gabriel com seus pais adotivos
Chegou o dia em que foi marcada uma visita dos possíveis pais adotivos ao lar. Tratava-se de um casal sem filhos, casados há 19 anos. Quando chegaram, a assistente social e eu conversamos um pouco com eles antes de apresentar-lhes o bebê. Mostraram-se bastante receptivos quanto ao trabalho de maternagem, valorizando-o muito.
Então uma das cuidadoras trouxe o bebê no carrinho. Quando o casal aproximou-se, Gabriel presenteou-os com um largo sorriso movimentando os braços, a mulher, agora sua mãe, segurou-o. Sentaram-se no sofá, falando com ele com entusiasmo e alegria, e o Gabriel, que normalmente estaria chorando - pois já havia passado da hora de mamar -, estava tranqüilo, sorrindo. Foi uma cena emocionante, um encontro há muito esperado por todos que ali estavam. Gabriel mamou nos braços de sua "nova mãe", interagiu bastante com o casal e adormeceu. Enquanto ele dormia, conversei longamente com sua mãe.
Quando Gabriel acordou, sua mãe buscou-o no carrinho e passamos a conversar com ele, ela o colocou em meu colo e falei para ele: "Olha, Gabriel, a sua mãe de quem eu sempre lhe falava, que também estava esperando por você, ela está aqui, veio conhecer você. Amanhã ela e seu pai vão levar você pra conhecer a casa deles que vai ser sua casa também, logo você vai ficar com eles. Aí você vai ter sua mãe só pra você, que vai lhe dar muito colo, carinho, e toda atenção que você precisa". Ao meu lado, enquanto eu falava, sua mãe confirmava minhas palavras.
A passagem dos cuidados de maternagem para os pais adotivos
Nos dois dias seguintes, os pais levaram o Gabriel para passar o dia com eles. No terceiro dia, fiquei com Gabriel e falei-lhe a respeito de nossa separação. Agora ele tinha uma família, um pai e uma mãe que cuidariam dele e o amariam muito, e ele iria para casa com eles. Disse-lhe, também, que eu havia gostado muito de seus pais e estava muito feliz por ele. Que ainda nos veríamos, pois iria até sua casa.
No final da tarde, os pais de Gabriel vieram buscá-lo, entreguei-lhes as fotografias, que havia tirado de Gabriel durante todo tempo, como forma de preservar sua história mais concretamente. Os pais mostraram-se dispostos a conservar sua história de vida, deixando-o sempre a par da verdade que lhe pertencia. Disse-lhes que era o melhor a fazer, que o conhecimento de Gabriel sobre sua história permitiria não apenas que ele fosse adotado como filho, mas que ele próprio viesse a adotá-los como pais. E ainda que um dia ele viesse a querer conhecer pessoas relacionadas a sua origem, o que é bastante natural, esse fato não mudaria, absolutamente, o vínculo afetivo entre eles.
Em visita domiciliar, após a ida do bebê para a casa dos pais adotivos, a mãe relatou comportamentos e situações que caracterizaram uma adequada adaptação do bebê ao novo ambiente e aos seus novos cuidadores. Disse que o bebê era bastante interativo, sorria, balbuciava, seguia-os com o olhar, que apenas chorava nas horas de mamar, para trocar a fralda e um "chorinho para dormir". Ressaltou que no primeiro dia o bebê dormira por bastante tempo, além do habitual, que ela e seu marido chegaram a ficar um pouco ansiosos pensando em acordá-lo para alimentá-lo, mas não o fizeram, pois ele dormia um sono bastante tranqüilo. Tal comportamento foi interpretado pela mãe com satisfação, pois julgou que o bebê se sentia seguro, em casa, e então relaxou e dormiu bem. Ao relatar vários momentos de interação entre o bebê e seus novos pais, sua mãe concluiu dizendo que sentia que o bebê realmente os havia adotado como pais.
Em acompanhamento posterior do bebê, aos seis meses, no ambulatório de pediatria, numa consulta de rotina, a mãe relatou que tudo corria bem em casa, Gabriel estava saudável, bastante "esperto" e interativo. Apesar de terem passado três meses desde meu último contato com Gabriel, ele demonstrou reconhecer-me, o que também foi observado por sua mãe. Permaneceu a maior parte do tempo da consulta no meu colo, sorridente, interagia bastante, tinha o olhar atento ao ambiente que o circundava.
O último encontro com Gabriel, até o presente momento, ocorreu na sua festa de aniversário de um ano. Gabriel caminhava alegremente por todos os lados, explorando o ambiente e interagindo com crianças e adultos, por vezes dirigia-se a seus pais chamando por eles. Pude observar, com grande satisfação, a integração de Gabriel na família adotiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esforços foram somados para a manutenção da maternagem como fator de proteção para o desenvolvimento desse bebê, visando minimizar, tanto quanto possível, os efeitos danosos da falta de uma figura de apego que supra suas necessidades desenvolvimentais, promovendo sua saúde mental.
Dessa forma, foi possível que o cuidado para com o Gabriel fosse levado ao término, com êxito. Foi realizada, adequadamente, a passagem gradual dos cuidados para os pais adotivos. Observou-se, nesse processo de passagem, uma adaptação muito satisfatória do bebê com os pais adotivos e vice-versa. A interação afetiva mãe-bebê, observada em visita domiciliar posterior, mostrou uma mãe bastante sensível e responsiva às necessidades físicas e emocionais do bebê, e testemunhou a preservação da capacidade do bebê em estabelecer vínculos afetivos.
Não restam dúvidas de que as longas rupturas com as pessoas significativas e a institu-cionalização prolongada agem como importantes fatores de risco para o desenvolvimento normativo da criança. A maternagem vem atuar, portanto, como fator de proteção para o desenvolvimento do bebê abandonado, possibilitando a ele o recebimento do cuidado e carinho de que necessita, minimizando, tanto quanto possível, os efeitos devastadores para o seu desenvolvimento emocional causados pela total ausência de uma figura de apego.
Os bebês e crianças abandonados ou entregues para os cuidados institucionais contam apenas com o suporte social como fator de proteção para seu desenvolvimento. Esse suporte social vem da rede social de apoio incluindo recursos da comunidade e suas agências. A maternagem acima descrita é uma parte integrante do suporte social dessas crianças; contudo, essa prática atinge uma parcela ínfima de bebês que são abandonados. Para todas as demais crianças e bebês institucionalizados seria imprescindível a disponibilidade de maior número de cuidadores que pudessem atender de forma constante e personalizada às suas necessidades físicas e emocionais. E, sobretudo, faz-se necessário acelerar os processos de adoção por parte dos órgãos competentes responsáveis para que bebês e crianças institucionalizadas integrem-se em uma família o mais precocemente possível.
Com o relato desse caso, acreditamos ter contribuído com a comunidade científica no sentido de incentivar e incrementar o interesse dos pesquisadores da área de desenvolvimento humano pelo desenvolvimento precoce, mesmo tendo conhecimento do difícil acesso metodológico aos bebês nessa fase do ciclo vital.

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