Na data de hoje, realizando audiências na Vara de Família, Infância, Juventude e Idoso, tive a oportunidade de examinar o caso concreto de pedido de adoção de um bebê recém nascido da companheira da autora. Por serem raros estes pedidos e a decisão judicial favorável creio seja relevante, academicamente, sua divulgação. Defendo a tese de que não havendo leis cabe ao Poder Judiciário firmar por suas sentenças e acórdãos os argumentos que poderão dar suporte à legislação futura. Assim se cria a jurisprudência e, com o tempo, poderemos ter leis claras e despidas de qualquer preconceito. Neste caso a decisão já transitou em julgado.
AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO
Processo nº: 0210470-55.2010.8.19.0001
Adoção
Requerente: A.
Criança: D..
Mãe: B.
Aos treze dias do mês de agosto do ano de dois mil e dez, na sala de audiências deste Juízo, perante o MM. Juiz, Dr. MARIA AGLAE TEDESCO VILARDO, e o ilustre representante do Ministério Público, feito o pregão, às 11:30 horas., presentes a Autora e a mãe biológica de D.. Ouvida A.disse que vive em união estável com B. há 19 anos; que o processo em apenso refere-se à adoção de C., também filho biológico de B.; que a Sentença reconheceu expressamente a união estável de ambas; que deseja a adoção de D., nascida em junho deste ano; que apresenta cópia de certidão de nascimento da criança. Ouvida B., declarou que tem ciência de todas as conseqüências próprias da adoção; que deseja que a adoção seja deferida; que o nome da adotanda passará a ser D.E.F. Dada a palavra ao MP, foi dito que considerando que se trata de adoção por companheira com o expresso consentimento da mãe biológica e que existe farta documentação nos presentes autos, bem como sólida prova pericial produzida nos autos em apenso, em cuja sentença foi reconhecida a união estável de A. e B., entendo dispensável, neste caso, a realização de estudo psicossocial. Deste modo, considerando que se trata de bebê, que é portanto dispensável o estágio de convivência, opino favoravelmente ao pedido nos termos da inicial. Pela parte Autora, em causa própria, reiterou a procedência do pedido inicial. Pela Juíza foi prolatada a seguinte SENTENÇA: Requerida a adoção de D., com 1 mês de vida, filha biológica de B., argumentando que a autora e B. vivem em união estável e já adotaram outro filho biológico de B., C., conforme processo em apenso. Requerem passe a autora a constar ao lado da mãe biológica, ambas como mães. Juntou documentos de fls. 50/162. Juntada certidão de nascimento neste ato. É o Relatório. DECIDO: O presente pedido de adoção apenas difere dos demais pedidos comuns a esta Vara em razão de que a parte que deseja adotar a filha de sua companheira, também é uma mulher. Sequer há necessidade de discutir a questão do reconhecimento da união estável, pois no processo em apenso (2008.710.009427-0), a sentença de fls. 143/146 reconhece a existência da união estável entre B.e A., inclusive com trânsito em julgado. Portanto, está patente que as partes são companheiras. Analisando a questão e observando os termos da sentença prolatada naquele feito, em março de 2009, pode-se observar que o caminho percorrido para a procedência daquele pedido foi trilhado no sentido de se alcançar o que fosse melhor para criança. Isto é o previsto no ECA, no art. 43 do ECA, apresentadas as reais vantagens e fundadas em motivos legítimos, ou seja, atendendo ao “melhor interesse da criança”. Não temos legislação que autorize expressamente a adoção por pessoas do mesmo sexo, todavia também não há qualquer norma que a vede. A Constituição Federal, em seu artigo 5º, II, determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. Em seu caput veda a distinção de qualquer natureza. Como objetivo fundamental da República Federativa determina a promoção do bem de todos, sem preconceitos ou discriminações (art. 3º, inc. IV). Estas normas constitucionais deixam evidenciada que no nosso sistema legislativo não pode haver determinação legal que impeça que pessoas do mesmo sexo exerçam plenamente a sua cidadania, com todos os direitos que a constituem. Inclusive o direito ao planejamento familiar. Com a mudança da legislação relativa à adoção, observa-se que a exigência prevista no art. 42, parágrafo 2º, para adoção conjunta, deve ser analisada sob o prisma constitucional. O que se deve buscar é estabilidade da família que recebe a criança. Este sim é o ponto importante da mudança legislativa, que poderá ser encontrada até mesmo em casais divorciados, como a própria lei prevê. Ressalto que na Sentença em apenso, como destacado pela Juíza prolatora, Dra. Ivone F. Caetano, a condição natural homoafetiva, utilizando termo cunhado pela Desembargadora do TJ/RS, Maria Berenice Dias, é situação que em nada altera o constatado bem estar de uma criança, pois as famílias convencionais há muito vem sendo modificadas e diversos estudos publicados indicam ausência de prejuízo para a criança em relação à condição sexual de seus cuidadores. Pelo histórico do processo em apenso e até pelos documentos juntados e depoimentos colhidos, que dão conta da formação estável dessa família, é dispensável até estágio de convivência ou aprofundamento de estudo social nestes próprios autos. Há estudo social no apenso, fls. 134/136, que repisa todo o exposto e apresenta parecer favorável, em dezembro de 2008, à adoção de C.. No mesmo sentido, o estudo psicológico (fls. 137/138). Como bem ressalva a psicóloga, a relação de filiação já existia durante a gestação e até mesmo antes desta, quando planejada a inseminação como projeto familiar. Desta forma, A. já vinha exercendo esta maternidade especial durante a concepção e com o nascimento de D.. Observando as fotografias juntadas nos autos, bem como as declarações, confirma-se o afirmado. Acrescente-se que a Autora é dependente, na qualidade de companheira, do Plano de Saúde de B.e que o médico obstetra declara, à fl. 62, todo o acompanhamento de A.durante o procedimento de F.I.V. Os avanços biotecnológicos devem ser amparados pelo Poder Judiciário. Se a inseminação artificial para nascer um bebê é legal, se, de fato, duas mulheres, que vivem como companheiras, podem criar esta criança, deve o Judiciário conferir a proteção cabível, concedendo os direitos civis previstos em lei. Diante da prova produzida e cientes as partes das conseqüências da adoção, atendidas as normas do ECA quanto à manifestação da vontade de ambas as partes, uma em compartilhar a filiação da filha e outra em recebê-la em adoção, restando plenamente caracterizado o benefício para D.na presente, inclusive passando a ficar na mesma condição de seu irmão C., atendendo ao artigo 5º da LICC, em consonância com o artigo 6º do ECA, que determina que na interpretação da lei leve-se em conta os fins sociais e as exigências do bem comum, JULGO PROCEDENTE o pedido inicial para CONCEDER a Adoção requerida da criança D.em favor de A., mantido o nome da mãe biológica B.. Determino seja expedido Mandado de cancelamento do RCN anterior e Mandado para novo RCN, passando a criança a se chamar D.E.F., tendo como filiação a autora e B., constando os genitores de ambas como avós, mantidos os demais dados do RCN anterior, desde que não colidentes com a presente decisão, observado o art. 47 do ECA. Sem custas. Publicada em audiência. Intimadas as partes. Transitada em julgado neste ato, eis que o M.P. declara desistir de seu prazo recursal. Procedam-se aos atos necessários. Dê-se baixa e arquive-se.
MARIA AGLAE TEDESCO VILARDO
Juíza de Direito
3 comentários:
Parabéns pela inovadora decisão!Isso é motivo de grande orgulho para seus amigos. Beijos!Chris
Com sentenças como estas, abrimos caminho para que se instale em nossa sociedade, maior valor às diferenças, respeito ao outro e tolerância a todos quanto não comungam com nossas ideias, "pretensamente melhores".
Parabéns e que esta seja uma dentre as muitas que deverão vir, desafogando o peito de milhares de companheiros (as) que sofrem, diuturnamente, com o preconceito e a humilhação.
Fraternalmente,
Lenir Castro
importante e corajosa decisão! abraço,
Maria Silvana
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