domingo, 31 de outubro de 2010

Violência doméstica e natureza jurídica das medidas protetivas de urgência

Autor: Júlia Maria Seixas Bechara

I- Introdução

A previsão de medidas protetivas de urgência na Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, é apontada como um dos maiores avanços no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil.
Afastamento do agressor do lar, proibição de contato e aproximação com a vítima, suspensão de visitas aos dependentes e prestação de alimentos provisionais são exemplos das disposições trazidas nos artigos 22, 23 e 24 da referida lei.
Quando bem contextualizadas, as medidas de proteção traduzem providência de utilidade insubstituível, na medida em que garantem o amparo da mulher, presumidamente hipossuficiente, em equilíbrio com direitos essenciais do apontado agressor, em especial a liberdade.

A despeito de sua importância, desde a promulgação da chamada Lei Maria da Penha, pouco se debateu acerca da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência por ela disponibilizadas.
Entretanto, a determinação da natureza jurídica de um instituto, mais do que mero exercício teórico de categorização, implica opção por padrões de procedimentos pré-definidos, cuja repercussão prática justifica e demanda a perquirição.
A incompreensível lacuna doutrinária tem gerado decisões judiciais de múltiplos e incompatíveis sentidos, inexistindo uniformização sequer entre julgados de um mesmo tribunal.
Por conseguinte, restam indefinidas questões como a duração das medidas de proteção, a perda de eficácia pelo não ajuizamento de ação principal, o recurso cabível contra a decisão que aprecia sua aplicação, a competência para conhecimento do recurso e as conseqüências do descumprimento da ordem.

Nesse sentido, as protetivas seriam medidas de caráter cautelar, demandando ajuizamento de processo principal? O processo principal seria cível ou criminal? O não ajuizamento do principal implicaria cessação da eficácia da ordem cautelar? Ou estas guardariam caráter satisfativo, dispensando qualquer outro instrumento? Qual o procedimento a ser seguido? Contra a decisão que aprecia o pedido, seria cabível o agravo de instrumento, o recurso em sentido estrito, a apelação ou o habeas corpus? Qual a turma competente para conhecimento do recurso ou da ação autônoma, a cível ou a criminal? A prisão preventiva seria instrumento idôneo para garantia de sua execução?

Essas e tantas outras questões podem ser respondidas somente quando se pressupõe a natureza jurídica da medida protetiva, o que se passa a analisar.

II. Posicionamento doutrinário

De modo geral, a doutrina, mesmo sem se deter especificamente no tema da natureza jurídica, trata a protetiva como medida cautelar, atribuindo a algumas delas caráter cível e a outras caráter penal.

Representativas desse posicionamento majoritário são as explanações de Maria Berenice Dias: "Encaminhado pela autoridade policial pedido de concessão de medida protetiva de urgência - quer de natureza criminal, quer de caráter cível ou familiar - o expediente é autuado como medida protetiva de urgência, ou expressão similar que permita identificar a sua origem. (...) Não se está diante de processo crime e o Código de Processo Civil tem aplicação subsidiária (art. 13). Ainda que o pedido tenha sido formulado perante a autoridade policial, devem ser minimamente atendidos os pressupostos das medidas cautelares do processo civil, ou seja, podem ser deferidas 'inaudita altera pars' ou após audiência de justificação e não prescindem da prova do 'fumus boni juris' e 'periculum in mora".
Igualmente, Denílson Feitoza: "Assim, firmamos um primeiro ponto: há procedimentos cíveis e criminais separados, conduzidos por juízes com competência cumulativa, cível e criminal, quanto à matéria violência doméstica e familiar contra a mulher. As medidas protetivas, por sua vez, são, conforme o caso, medidas cautelares preparatórias, preventivas ou incidentes, como constatamos por suas características e por interpretação sistemática com outras leis. A mudança de denominação ("protetivas") não lhes retirou seu caráter. Por outro lado, há várias medidas protetivas, na Lei 11.340/2006, que têm, de modo geral, caráter dúplice, podendo ser utilizadas como medidas cautelares cíveis ou criminais (...)".

Segundo o autor, ostentariam caráter penal as medidas do artigo 22, incisos I, II, III, alíneas "a", "b" e "c". Já as medidas do artigo 22, incisos IV e V, artigo 23, incisos III e IV, e artigo 24, incisos II, III e IV, teriam caráter cível. Ainda, guardariam caráter administrativo as disposições do artigo 23, incisos I e II, e artigo 24, inciso I.

Por fim, destaca-se igual entendimento de Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinho, que, em capítulo denominado "cautelaridade", asseveram: "Como tal, devem preencher os dois pressupostos tradicionalmente apontados pela doutrina, para concessão das medida cautelares, consistentes no perciculum in mora (perigo da demora) e fumus bonis iuris (aparência do bom direito)". Adiante, complementam apontando a duplicidade de sua natureza: "Ocorre que várias dessas medidas possuem, inequivocamente, caráter civil".

III. Posicionamento jurisprudencial

A jurisprudência tem se mostrado vacilante. Com perplexidade, constatam-se posicionamentos diametralmente opostos dentro de um mesmo Tribunal de Justiça.

À míngua de deliberação do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, divergem as cortes acerca do recurso cabível e da turma competente para apreciá-lo.

Em louváveis, porém estranhas tentativas de apaziguamento da dissensão, chega-se a conhecer agravo de instrumento como recurso em sentido estrito, admitir-se a fungibilidade entre apelação cível e criminal[5], ou ainda conceder-se habeas corpus de ofício no bojo de agravo de instrumento.
Ilustrativas da divergência, que se repete em igual gravidade em outras cortes brasileiras, destacam-se as seguintes decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

PROCESSUAL - CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA - RECURSO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO PROFERIDA POR JUIZ CRIMINAL COM FUNDAMENTO NA LEI MARIA DA PENHA - COMPETÊNCIA DA TURMA CRIMINAL.1. O julgamento de recurso interposto contra decisão proferida em processo de medida cautelar submetida à jurisdição de Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica Familiar contra a Mulher, consubstanciada em medidas protetivas, é da competência de Turma Criminal. 2. Conflito julgado procedente, declarando-se competente a 2ª Turma Criminal. Unânime. (20080020137058CCP, Relator ESTEVAM MAIA, Conselho Especial, julgado em 11/11/2008, DJ 28/01/2009 p. 47)

PENAL E PROCESSUAL PENAL. AMEAÇA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. PRELIMINAR: APELO INTERPOSTO COM APOIO NAS REGRAS DO PROCESSO CIVIL. ADMISSIBILIDADE, EM FACE DE ERRO JUSTIFICÁVEL CAUSADO PELO PRÓPRIO SENTENCIANTE. MÉRITO: CONCESSÃO DE MEDIDA PROTETIVA DE AFASTAMENTO DO LAR CONJUGAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NÃO OBSERVÂNCIA. NULIDADE. 1.Apesar da natureza penal da decisão resistida, o recurso de apelo, interposto de acordo com as regras processuais civis, não pode ser considerado intempestivo se o próprio julgador que proferiu a sentença resolveu o feito com base no art. 269, inciso I, do Código de Processo Civil, levando o apelante, portanto, a erro justificável (...) 3. Apelo conhecido e provido. (20060111217028APR, Relator ARNOLDO CAMANHO DE ASSIS, 2ª Turma Criminal, julgado em 02/04/2009, DJ 24/06/2009 p. 247)

AGRAVO DE INSTRUMENTO - NÃO CONHECIMENTO - HABEAS CORPUS - CONCESSÃO DE OFÍCIO - POSSIBILIDADE - LEI MARIA DA PENHA - MEDIDAS PROTETIVAS - MODULAÇÃO DE INTENSIDADE - ORDEM PARCIALMENTE MODIFICADA 1) - Não se conhece, em Turma Criminal, de agravo de instrumento, que é recurso cível, previsto no artigo 522 do CPC, sendo competente para dele conhecer Turma Criminal (sic), nos precisos termos do artigo 18, I, do Regimento Interno desta Casa. 2) - Possível conceder-se, de ofício, Habeas Corpus, nos exatos termos do §2º, do artigo 644, do CPP (...). 3) - Agravo de instrumento não conhecido. Habeas Corpus concedido de ofício, parcialmente. (20100020000138AGI, Relator LUCIANO MOREIRA VASCONCELLOS, 1ª Turma Criminal, julgado em 18/02/2010, DJ 19/03/2010 p. 124)

PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. INDEFERIMENTO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE NATUREZA CÍVEL. RECURSO PRÓPRIO. NÃO CONHECIMENTO. 1 As medidas protetivas de natureza cível e o processo criminal são absolutamente independentes e desafiam deslinde específico, sendo que o indeferimento daquelas desafia recurso próprio na esfera cível, mais especificamente o de agravo de instrumento, tornando-se inadmissível o manejo de apelação criminal. Afasta-se a competência da Turma Criminal em favor da Turma Cível. 2 Remessa dos autos à uma das Turmas Cíveis, competente para conhecer da matéria questionada. (20070810005359APR, Relator GEORGE LOPES LEITE, 1ª Turma Criminal, julgado em 12/06/2008, DJ 09/07/2008 p. 95)

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA - AMEAÇA - INDEFERIMENTO DE MEDIDAS PROTETIVAS - NATUREZA CÍVEL - INCOMPETÊNCIA DA TURMA CRIMINAL. I. As cautelas relacionadas no art. 22, incisos II e III, alíneas "a" e "b" da Lei 11.340/06 possuem natureza cível. O recurso interposto pelo indeferimento das medidas refoge à competência da Turma Criminal. II. Recurso não conhecido. Determinada a remessa a uma das Turmas Cíveis. (20090210046414APR, Relator SANDRA DE SANTIS, 1ª Turma Criminal, julgado em 05/07/2010, DJ 29/07/2010 p. 265)

IV. Crítica à ambivalência

Pressupondo-se que os julgadores encontram boa parte dos fundamentos de suas decisões na doutrina, de uma breve análise do apanhado de jurisprudência retro, observa-se que o atual posicionamento daquela tem gerado alarmantes divergências.

Tal resultado advém do tratamento ambivalente atribuído às medidas de urgência, oscilante entre regras de direito material e processual incompatíveis entre si.

Se por um lado a afirmação de que algumas protetivas ostentam caráter penal enquanto outras ostentam caráter cível procura sanar a omissão - se não a atecnia - legislativa, por outro fere a homogeneidade necessária à resolução segura de conflitos.

O cenário se torna caótico quando se verifica a inexistência de consenso entre os operadores sequer sobre quais seriam as medidas cíveis e quais seriam as criminais.

Por conseguinte, imagine-se, por exemplo, o deferimento, em uma mesma decisão, de duas medidas protetivas, sendo uma considerada cível e a outra penal. Desejando recorrer, o apontado autor do fato deveria, seguindo a orientação acima, manejar dois recursos, sendo um dirigido à turma cível e o outro à turma criminal, no que encontraria óbice no princípio da unirrecorribilidade.

Ainda no mesmo exemplo, caso desobedecidas as ordens, a execução forçada da medida cível seguiria o rito do cumprimento de obrigação de fazer do Código de Processo Civil, ao passo que a medida criminal poderia ser assegurada pela prisão preventiva.

Parece pouco razoável admitir-se a ocorrência cotidiana de tais complicações.

Ainda que se vislumbrem traços de caráter cível e traços de caráter penal, a boa técnica, pautada nos princípios da igualdade, da celeridade e da segurança - e, por que não dizer, no bom senso - impõe que se atribua natureza jurídica única a todas as medidas protetivas, tendo como vértice as mais elementares definições do direito, como se verá a seguir.

V. Método de definição da natureza jurídica

O que determina a natureza jurídica de um instituto é sua relação com o objeto da disciplina paradigma.

Para a enunciação do caráter da medida protetiva de urgência, portanto, basta que essa seja confrontada com as definições de direito penal e direito civil.

Nesse sentido, sabe-se que o direito penal é o conjunto de normas editadas pelo Estado definindo crimes e contravenções, isto é, impondo ou proibindo determinadas condutas sob a ameaça de sanção ou medida de segurança.

Por sua vez, o processo penal deve conferir efetividade ao direito penal, fornecendo os meios para materializar a aplicação da pena ao caso concreto.
Já o direito civil é o ramo que regula as relações entre os indivíduos nos seus conflitos de interesses, ao passo que o processo civil consiste no sistema de princípios e normas aplicado à solução de conflitos em matéria não-penal.
Portanto, em linhas gerais, se um instituto diz respeito à definição de delitos ou, de algum modo, à aplicação de sanção em razão de seu cometimento, ostenta caráter penal. De outro lado, se limita-se a reger as relações entre particulares em conflito, ostenta caráter civil.

Isso posto, sabendo-se que as medidas protetivas nada mais são do que providências judiciais com vistas a garantir a integridade física ou psíquica da vítima em situação de violência doméstica em face do suposto agressor, a conclusão por sua natureza jurídica cível deflui naturalmente.

VI. Crítica à natureza penal

Consoante acima exposto, doutrina e jurisprudência majoritárias apontam que muitas das medidas protetivas elencadas na Lei Maria da Penha ostentam caráter penal.

Todavia, para tanto, deveriam dizer respeito à descrição de delitos ou à aplicação de sanção por seu cometimento, o que não ocorre em absoluto. Os artigos 22, 23 e 24 do referido diploma legal, ao mesmo tempo em que não definem crimes ou contravenções, tampouco estabelecem procedimentos de repercussão no processo penal, que, se houver, tramitará em autos apartados.

A finalidade da medida de proteção, como visto, é garantir a integridade da mulher vítima de violência pelo suposto agressor, em nítida disciplina de conflito de interesses.

É fato que, no mais das vezes, as medidas se fazem necessárias porque foi a mulher vítima de delito.

Tal situação, entretanto, não tem o condão de transmudar o caráter da ordem, sob pena de injustificada imiscuição das diferentes esferas, sendo inquestionável que um único fato possa gerar conseqüências em mais de um âmbito jurídico.

A mesma situação existe, por exemplo, com o possuidor esbulhado. Ora, ainda que a invasão de terreno ou edifício alheio constitua crime previsto no artigo 161, parágrafo 1º, inciso II, do Código Penal, a ordem de reintegração de posse obtida em ação possessória nem por isso ostenta caráter penal.

Poder-se-ia argumentar, ainda, que a natureza criminal seria sinalizada pela possibilidade de formulação do pedido por intermédio da autoridade policial, cuja atribuição se circunscreveria ao âmbito penal.

Todavia, o artigo 12, inciso III, da lei em comento, é expresso em determinar a autuação do expediente da medida protetiva em apartado ao inquérito ou ao termo circunstanciado. Uma vez remetido o pleito ao Judiciário, esgota-se a função do delegado de polícia.

Cuida-se, pois, de mecanismo de aceleração da postulação da protetiva, na medida em que permite à ofendida formular o pedido sem o trâmite necessário, e por vezes moroso, à obtenção de assistência de advogado ou ao contato com órgão do Ministério Público, tudo nos termos dos artigos 19 e 27 do mesmo diploma legal.

Ademais, a atribuição de natureza penal teria o condão de vincular a medida protetiva ao processo criminal, do que decorreriam consequências preocupantes.

Nesse sentido, uma vez retratada a representação nos crimes de ação penal condicionada, seja por desinteresse na punição do autor, seja para evitar-se o constrangimento da vitimização secundária advinda dos sucessivos atos processuais, a vítima ver-se-ia desprovida da proteção desejada.

De outro lado, não seria incomum a manutenção da representação apenas como forma de garantir-se a vigência das protetivas, em evidente desvio de finalidade do processo-crime.
Por tais razões, parece pouco razoável que se sustente o caráter criminal das medidas protetivas de urgência.

VII. Natureza cível

Por regularem as relações entre vítima e agressor em conflito de interesses, ostentam as medidas protetivas de urgência natureza cível.

A conclusão se reforça pela análise do texto legal.

Em diversas passagens, a Lei 11.340/2006 se refere aos procedimentos de natureza cível. Assim, assumida a natureza penal das medidas, muitos dos dispositivos legais seriam completamente esvaziados.

Com efeito, o artigo 13 é expresso em determinar a aplicação do Código de Processo Civil aos processos cíveis decorrentes de violência doméstica.

Por sua vez, os artigos 14 e 33 mencionam a competência cível dos juizados especializados.

Já o artigo 15 define o juízo competente para apreciação das ações cíveis de igual origem, permitindo à vítima optar por sua distribuição no juizado de seu domicílio, do domicílio do agressor ou do local do fato em que se baseou a demanda. Note-se, nesse ponto, a diferença das regras de definição de competência estabelecidas no Código de Processo Penal, que, a princípio, determinam a apreciação do feito no lugar em que se consumar a infração.

Ainda, o artigo 25 ordena a intervenção do Ministério Público nas causas cíveis de igual origem, bem como o artigo 27 a assistência de advogado nesses atos processuais.
Ora, ostentando as protetivas caráter criminal, tais dispositivos perderiam aplicabilidade, não parecendo ser essa, por óbvio, a intenção do legislador.

Isso posto, cumpre analisar as consequências advindas da definição ora adotada.

VIII. Procedimento

O procedimento aplicável às medidas protetivas é o definido nos artigos 18 e 19 da Lei Maria da Penha, bem como, parece-nos, os relativos ao processo de conhecimento do Código de Processo Civil.

Assim, recebido o expediente, o juiz deve conhecê-lo e decidi-lo no prazo de 48 horas.

Verificada a verossimilhança das alegações e havendo fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, deferirá o pleito em antecipação de tutela, nos termos do artigo 273 do Código de Processo Civil.

Da decisão cabe agravo de instrumento, conforme artigo 522 do mesmo diploma legal.

O feito deve seguir trâmite regular, instaurando-se o contraditório e produzindo-se prova em audiência, se necessário.

Após, deve ser julgado mediante sentença proferida nos termos dos artigos 267 e 269 do Código de Processo Civil. Eventual recurso será a apelação, dirigida à turma cível do Tribunal de Justiça.

A ordem comporta execução - provisória ou definitiva - em caso de descumprimento. Para tanto, o artigo 22, § 4º, da lei em comento, estabelece como mecanismo de coerção o sistema de cumprimento de obrigações de fazer e não fazer previsto no artigo 461 do Código de Processo Civil. Com isso, possibilita a efetivação da tutela mediante imposição, por exemplo, de multa diária, providência, aliás, ainda sem previsão dentro da atual sistemática processual penal.

IX. Crítica à cautelaridade

Doutrina e jurisprudência, conforme exposição retro, são uníssonas em cuidar das protetivas como medidas cautelares.

Por definição, medidas cautelares são tutelas de urgência com as quais se busca evitar que a decisão da causa, ao ser obtida, não mais satisfaça o direito invocado.

Nessa lógica, deveriam as medidas protetivas obedecer aos requisitos mínimos de instrumentalidade, de temporariedade e de não-satisfatividade. Entretanto, por serem tais características incompatíveis com sua finalidade, não há como sustentar-se tal tese.

Com efeito, como cautelar, a protetiva deveria fazer referência a um processo principal, conforme artigo 796 do Código de Processo Civil. Para alguns, é possível que se entenda que o principal é o processo criminal. Todavia, essa vinculação traria os inconvenientes acima apontados, em especial a desproteção da mulher em caso de retratação da representação, ou a manutenção dessa para garantia de vigência da ordem. Ademais, não se pode admitir que medida de natureza cível vincule-se a processo principal de caráter criminal.
Para outros, então, principal seria o processo a ser ajuizado na vara de família, como o de divórcio, o de reconhecimento e dissolução de união estável, o de alimentos. Ainda que tal entendimento seja compatível com a natureza cível da protetiva, é certo que essa não guarda o traço da referibilidade àquelas demandas. A proibição de contato do ofensor com a vítima não seria instrumento de sucesso da ação de alimentos, para se dar um exemplo. No mais, há casos em que vítima e ofensor não têm pendências judiciais a serem resolvidas, como na violência entre irmão e irmã ou entre namorados.
Outro problema diz com o prazo de cessação da eficácia da tutela, nos termos do artigo 808 do referido diploma legal. Assim, uma vez deferida a protetiva, a vítima teria o lapso de trinta dias para ajuizamento do processo principal, sob pena de perda da eficácia da ordem.
Tal conseqüência, por demais gravosa, vai de encontro à razão de existência das próprias medidas protetivas. Se, de um lado, se constatam dificuldades para o ajuizamento das demandas, como o acesso à célere assistência jurídica, a obtenção de documentos necessários à propositura da ação ou mesmo a instabilidade emocional, de outro lado é possível que sequer exista a necessidade de outro feito, como mencionado anteriormente.

De tal modo, a exigência de futura propositura de ação significaria nova desproteção à vítima, em atendimento a formalismo incompatível com o mecanismo de solicitação da ordem.

Isso posto, conclui-se que a medida protetiva, porque autônoma e satisfativa, não é tutela de natureza cautelar, mas sim tutela inibitória.

Com efeito, ao entregar à vítima o direito material invocado - consistente em sua proteção perante o suposto agressor - dispensa a medida protetiva qualquer outro procedimento, produzindo efeitos enquanto existir a situação de perigo que embasou a ordem (rebus sic stantibus).

A circunstância de a demanda ser fundada em perigo e baseada em cognição sumária - na fase de antecipação de tutela da protetiva - não implica, necessariamente, a caracterização da medida como cautelar.

Cuidando de tal diferenciação, esclarece Luiz Guilherme Marinoni que "a mais importante das tutelas jurisdicionais a serviço da integridade do direito material é a tutela inibitória, destinada a proteger o direito contra a possibilidade de sua violação. Para ser mais preciso, a tutela inibitória é voltada a impedir a prática de ato contrário ao direito, assim como a sua repetição, ou ainda, continuação. Se a cautelar serve para assegurar a tutela do direito, pra prevenir a violação do direito não é necessária uma tutela de segurança, mas apenas a tutela devida ao direito ameaçado de violação, ou seja, a tutela inibitória".
Portanto, uma vez deferida a ordem, porque demonstrada a probabilidade de violação do direito, para sua vigência é suficiente que permaneça a situação de perigo que a lastreou, não havendo que se falar em ajuizamento de processo principal.

X. Prisão civil

A Lei Maria da Penha alterou a redação do artigo 313 do Código de Processo Penal para possibilitar a decretação da prisão preventiva como garantia da execução das medidas protetivas de urgência se o fato envolver violência doméstica e familiar contra a mulher.

A abertura tem possibilitado casos aberrantes de prisão preventiva duradoura decretada no bojo de termo circunstanciado instaurado para apuração de contravenção penal ou de inquérito versando sobre crime cuja pena máxima jamais levaria ao cumprimento da sanção em regime fechado.

A inclusão é absurda e fere os mais primordiais princípios do sistema de garantias individuais previsto na Constituição Federal, não encontrando amparo sequer nos tratados internacionais que versam sobre violência doméstica.

Visto que são as protetivas medidas de natureza cível, a previsão de prisão para garantia de sua execução nada mais é do que nova hipótese de prisão civil.

O simples fato de a previsão ter sido alocada no Código de Processo Penal não tem o condão de forjar a natureza criminal da sanção.

Assim, conferida a medida protetiva à mulher, essa deve se valer dos mecanismos próprios à execução da tutela inibitória, com todas as providências previstas no artigo 461 do Código de Processo Civil, tal como determina o artigo 22, § 4º, da Lei 11.340/2006.

Note-se que há ordens judiciais igualmente importantes para aquele que a obtém ou de semelhante repercussão para o que a sofre, mas que nem por isso levam à cogitação do decreto da prisão, como é o caso, por exemplo, de liminar em reintegração de posse ou do afastamento do cônjuge do lar obtido na vara de família.

A doutrina começa a concluir no sentido da inconstitucionalidade. Assim, Rogério Sanches Cunha: "Com efeito, se a medida protetiva é de caráter civil, a decretação da prisão preventiva, em um primeiro momento, violará o disposto nos arts. 312 e 313 do CPP, que tratam, por óbvio, da prática de crimes. E, pior, afrontará princípio constitucional esculpido no art. 5º, LXVII, que autoriza prisão civil apenas para as hipóteses de dívida de alimentos ou depositário infiel".
Paulo Rangel é ainda mais incisivo. Ao tratar do inciso IV do artigo 313, assim conclui: "Nada mais hediondo. A prisão preventiva é para assegurar o curso do processo (cautelar) e não para assegurar o cumprimento de medidas administrativas de proteção da ofendida. Não somos contra as medidas de proteção da ofendida, mas o Estado deve lançar mão de outros mecanismos para assegurar seu efetivo cumprimento que não a prisão do acusado (...) O Estado não tem como dar garantias à ofendida e, por isso, mandar prender o acusado. Criou as regras protetivas da ofendida sabendo que a realidade brasileira não permitirá assegurá-las e resolveu prender o acusado para que ela ficasse tranqüila".
Logo, a análise da possibilidade de decretação da prisão preventiva do agressor deve ser encetada junto ao processo-crime - não no bojo da medida protetiva -, atentando-se às hipóteses do artigo 312 do diploma processual penal e tendo-se como vértice a proporcionalidade e a homogeneidade. Qualquer decisão que fuja a tais parâmetros inexoravelmente levará consigo a pecha da ilegalidade.

XI. Conclusão

Por todo o exposto, conclui-se que as medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, ostentam natureza jurídica de tutela inibitória cível.

De tal conclusão emergem como consectários a adoção do procedimento ordinário do Código de Processo Civil, a execução com fundamento no cumprimento de obrigações de fazer ou não fazer do mesmo diploma legal e a inconstitucionalidade da prisão decretada com o fim exclusivo de garantir sua execução.

Espera-se que doutrina e jurisprudência atentem-se para a importância da uniformização do trato da natureza jurídica das medidas de proteção, controlando, assim, a profusão de decisões incompatíveis entre si e insustentáveis diante do sistema de garantias individuais vigente.

Júlia Maria Seixas Bechara é Defensora Pública do Distrito Federal, titular da Procuradoria de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Circunscrição Judiciária de São Sebastião, Membro do IBDFAM.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) comentada artigo por artigo. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal, Teoria, Crítica e Práxis. 6ª edição. Niterói: Impetus, 2009.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. 11ª edição. Niterói: Impetus, 2009.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo Cautelar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17ª edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 3ª edição. Salvador: Podivm, 2009.

[1] DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça, p.140.
[2] FEITOSA, Denílson. Direito Processual Penal, p. 626.
[3] CUNHA, Rogério Sanches.Violência Doméstica, p. 121 e 136.
[4] TJDFT, Conselho Especial, Conflito de Competência 20080020137058, DJ 28/01/2009.
[5] TJDFT, 2ª Turma Criminal, Apelação 20060111217028, DJ 24/06/2009.
[6] TJDFT, 1ª Turma Criminal, Agravo de Instrumento 20100020000138, DJ 18/02/2010.
[7] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral, p. 9.
[8] TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal, p. 59.
[9] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Parte Geral, p.14.
[10] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, Volume II, p. 23.
[11] MARINONI, Luiz Guilherme. Processo Cautelar, p. 38.
[12] CUNHA, Rogério Sanches. Violência Doméstica, p. 121.
[13] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal, p. 777.
Portal IBDFAM - http://www.ibdfam.org.br/

retirado do site do IBDFAM

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