No início de fevereiro deste ano — portanto, antes de o Supremo Tribunal Federal reconhecer a união homoafetiva e os direitos decorrentes dela aos casais homossexuais —, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou a duas mulheres a possibilidade de registrar o filho, no cartório, com o nome de ambas. Ficou vencido o desembargador Wagner Cinelli que reconhecia o direito das companheiras. Como não foi apresentado recurso, o processo já baixou para o primeiro grau.
Para a especialista na matéria, a advogada Maria Berenice Dias, depois da decisão do Supremo, casos como o analisado pelo TJ do Rio serão decididos de outra maneira a partir de agora. Se o juiz decidir de modo diverso, bastará uma reclamação ao STF para que pessoas do mesmo sexo tenham garantido o mesmo direito que os casais heterossexuais têm.
Segundo Berenice Dias, pessoas que entraram na Justiça e tiveram o pleito negado, poderão entrar com novo pedido mesmo que a decisão já tenha transitado em julgado. A especialista explica que o Judiciário não poderá alegar a coisa julgada para afastar o reconhecimento dos direitos dos casais.
No caso analisado e negado, por maioria, no TJ do Rio de Janeiro, duas mulheres entraram com pedido de declaração de filiação. Elas afirmaram que já vivem em união homoafetiva há mais de 15 anos. Informaram que, através de inseminação artificial, os óvulos de uma delas foram fertilizados pelo espermatozóide de um doador anônimo e implantados no útero da companheira. Com isso, pediram, em consideração ao bem estar do menor, que ele fosse reconhecido judicialmente como filho das duas mães.
O relator da apelação, desembargador Paulo Mauricio Pereira, tentou justificar a negativa como pedido juridicamente impossível e extinguir o processo sem exame do mérito. Os demais, no entanto, não o acompanharam e analisaram as alegações das mulheres.
Prevaleceu o entendimento de que não cabe o registro de dupla maternidade. Segundo o relator, a ciência médica e o ordenamento jurídico não preveem “o nascimento de um ser gerado e parido por duas mães ao mesmo tempo nem a feitura de um registro de nascimento original no qual conste a dupla maternidade ou paternidade”.
Paulo Mauricio diz ainda, em seu voto, que tem dúvidas se o registro beneficia de fato a criança. “Qual será a sua reação quando passar a entender as coisas, quando ver seus colegas de escola com um pai e uma mãe, enquanto ela tem dois pais ou duas mães? Será que haverá adaptação à situação diferente das demais crianças ou será que advirão seqüelas de ordem psicológica, inclusive com dificuldade na sua identificação sexual?”, perguntou. Para ele, as dúvidas são “reais, palpáveis, plausíveis e razoáveis”.
O desembargador Sérgio Jerônimo de Abreu e Silva foi além. Ele votou no sentido de manter integralmente a sentença, que julgou o pedido improcedente e ainda determinou que o caso fosse apresentado ao Ministério Público e à Corregedoria do Tribunal para que fossem apuradas eventuais irregularidades, tanto da clínica responsável pela inseminação quanto do cartório que registrou a criança.
O motivo pelo qual o desembargador entendeu por oficiar a Corregedoria foi o fato de o termo de registro de nascimento do menor ter sido lavrado com a declarante como a mulher que cedeu os óvulos. Já em relação à clínica, entendeu o desembargador, os atos praticados na inseminação artificial “infringiram as éticas moral, social e médica, de necessárias apurações para que outros atos semelhantes ou piores não venham praticar em nome do amor, pois se sabe que em seu nome tudo se comete”.
Em janeiro deste ano, o Conselho Federal de Medicina publicou uma resolução com novas normas para reprodução assistida. O CFM entendeu que outras pessoas, independente do estado civil e da orientação sexual, poderiam se beneficiar da técnica.
O desembargador Wagner Cinelli ficou vencido no julgamento da apelação no TJ do Rio. Em seu voto, entendeu que sequer cabia a discussão da ética médica, pois se tratava de fato consumado, além de lembrar a recente modificação nas normas do CFM em relação à reprodução assistida.
“Além disso, deparamo-nos com realizações bem mais complexas do que a dos autos, como, por exemplo, quando a reprodução conta com o sêmen de um doador anônimo, o óvulo também doado, a barriga de uma outra pessoa e o pai e a mãe da criança não participaram da reprodução com nenhum elemento físico que pudessem ter fornecido, a não ser com a intenção, sempre nobre, de serem pai e mãe. E o são”, considerou Cinelli.
Para o desembargador, as duas são mães da criança. “As duas contribuíram de forma física e também psíquica para a existência e desenvolvimento do bebê”, disse. Ele citou Lévi-Strauss para falar da preponderância do social sobre o biológico: “Um sistema de parentesco não consiste nos elos objetivos de filiação ou consangüinidade dados entre os indivíduos; só existe na consciência dos homens, é um sistema arbitrário de representações, não o desenvolvimento espontâneo de uma situação de fato”.
Segundo Cinelli, no mundo dos fatos, a criança considerará as duas como mãe. “Possivelmente [a dupla maternidade] ocorrerá também no mundo jurídico porque, diante de um insucesso neste processo, terão as requerentes a possibilidade de chegarem a um resultado similar com o pedido de adoção por uma delas”, disse.
“Não é possível, até o momento, fazer qualquer aferição desabonadora a esta família, sendo certo que o que contribuirá para a formação da criança serão os valores que lhe serão introjetados, não havendo garantia para nenhum ser nascido neste mundo de como será quando adulto”, considerou, ainda, o desembargador Cinelli.
Ele também citou uma decisão da Justiça paulista. No caso, duas mulheres, representadas pela advogada Berenice Dias, conseguiram registrar os filhos gêmeos com o nome de ambas. Os gêmeos, assim como no caso analisado pelo Tribunal de Justiça fluminense, foram gerados a partir de reprodução assistida usando o óvulo de uma e o útero da outra.
Wagner Cinelli, que no caso em julgamento no TJ do Rio ficou vencido, acrescentou ao voto várias considerações. Entre elas a de que as duas mulheres lutam contra o Estado, já que não estão litigando entre elas. Ele cita o antropólogo Pierre Clastres, que chama a atenção para o fato de o Estado, às vezes, tornar-se inimigo da sociedade.
“Há na tensão entre sociedade e Estado uma relação dialética e que reclama, de forma constante, cobranças e mudanças. Aí surge o Judiciário como um dos caminhos para o reconhecimento de direitos, muitas vezes negados pelo Estado aos membros da sociedade”, escreveu no voto.
O exemplo abordado por Cinelli foi do reconhecimento pelo Supremo do direito da concubina. O voto do desembargador foi proferido antes do STF reconhecer a união estável homoafetiva. De acordo com a decisão da Suprema Corte, até que o Congresso regulamente o tema, vale para os casais homossexuais o que é garantido aos heterossexuais.
Direito do futuro
Ao votar a favor das duas mulheres, Cinelli disse que “muitas vezes, o voto vencido é apenas o direito do futuro. Às vezes, o futuro está mais próximo do que se poderia pensar.” Estava. Três meses depois do voto que, embora não tenha prevalecido, reconhecia o direito das duas mulheres, o Supremo analisou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade e uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A ADPF foi transformada em ADI depois que se verificou que um de seus pedidos, o reconhecimento de benefícios previdenciários para servidores do estado do Rio de Janeiro, já havia sido reconhecido em lei.
A ADI foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República para declarar de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e estender os mesmos direitos dos companheiros de uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.
Já o argumento principal da ADPF transformada em ADI, proposta pelo estado do Rio de Janeiro, foi o de que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais constitucionais como igualdade e liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana.
No Tribunal de Justiça do Rio, cujo governo estadual foi um dos responsáveis por provocar o Supremo, as Câmaras Cíveis têm reconhecido os direitos, sobretudo patrimoniais, de pessoas do mesmo sexo. Para tanto justificam a relação como sociedade de fato, uma solução paliativa que não é bem aceita pelos defensores dos direitos homoafetivos.
No final do ano passado, entretanto, a 19ª Câmara Cível, acompanhando voto do desembargador Ferdinaldo Nascimento, entendeu que as regras da sociedade de fato devem ser aplicadas aos sócios que se unem com objetivos comerciais e não à uma relação de afeto.
No caso, a Câmara reconheceu a união estável de duas mulheres e garantiu a uma delas um apartamento comprado pelas duas. O apartamento estava sendo disputado com os irmãos da companheira, que havia falecido.
retirado do site da AMAERJ
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