segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Dois cafés e a conta ... com Ivone Caetano


Drª Ivone Ferreira Caetano é Juíza Titular da Vara da Infância, Juventude
e Idoso da Capital Rio de Janeiro 
Juíza atualizada e engajada com seriedade na luta para manter nossas
crianças a salvo de negligências e abandonos.

por Mauro Ventura 
Há seis meses, a prefeitura do Rio tomou uma decisão inédita e polêmica:
 a internação obrigatória, em abrigos, de crianças e adolescentes de rua
 viciados em crack. A ideia partiu da juíza da 1ª Vara da Infância, da 
Juventude e do Idoso, Ivone Caetano. “Nas cracolândias, vi crianças
 jogadas dentro de lixeiras, drogadas. O crack leva à morte—da gente,
 se eles nos atacam, ou deles.” Prestes a completar 67 anos, mãe de um
 rapaz de 39 anos e de uma moça de 35, ela substituiu em 2004 o juiz
 Siro Darlan, tornando-se a primeira mulher a dirigir o órgão. “Tive uma
 trajetória muito dura, mas não infeliz”, diz ela, nascida e criada em
 Laranjeiras. Para ajudar em casa, vendia bordados, tricôs e crochês,
 e tinha três empregos (IBGE, Banco Boavista e Secretaria de Finanças).
 “Somos 11 filhos, dormíamos todos no mesmo quarto. Eu tinha 11 anos
 quando meu pai nos abandonou, e ajudei a criar os mais novos.” Quando
 se casou, aos 24 anos, o marido pediu que parasse de trabalhar e fosse
 estudar. Formou-se em Direito, advogou por 18 anos, até se tornar juíza
 em 1994. Na 1ª Vara, já autorizou mais de 20 adoções por casais homossexuais,
 permitindo ainda que a criança tenha o nome dos dois pais ou mães.


REVISTA O GLOBO: O que você vê no seu dia a dia?
IVONE CAETANO: Aqui o sofrimento é uma constante. Maus tratos, abusos,
 bebês abandonados em saco plástico, lata de lixo, formigueiro. Tem pretendente
 à adoção que leva a criança em guarda provisória e devolve, como se fosse
 mercadoria, porque não era perfeita. Quando tem coisa boa a gente exulta. Sou
 muito fechada, mas tenho que brincar o tempo todo com meus auxiliares senão
 vou parar no hospital também.

O que mudou nesses seis meses de internação obrigatória de jovens viciados em crack?
A situação está muito melhor. Lógico que os abrigos não estão sequer perto da perfeição,
 precisam ser aparelhados, não sou cega. Mas a sociedade tem que forçar a melhoria deles.
 De qualquer forma, algo está sendo feito, pela primeira vez. Tanto que muitos jovens
 estão se conscientizando e vindo nos procurar, sozinhos ou trazidos pelos pais,
 pedindo para ser tratados em abrigos. Quando criei o projeto, recebi críticas de que
 estava ferindo o direito de ir e vir deles. Mas de que adianta ter direito de ir e vir se
 estão indo para a morte? Na rua, eles não estão em liberdade e, sim, prisioneiros das
 drogas. O crack está criando uma geração de zumbis, de mortos-vivos. E a sociedade
 mantém a criança na rua. Em 2005, havia 501 crianças nas ruas e 500 ONGs cuidando
 delas. Se você a tira da rua, tem gente que perde o filão.

O que você acha de dar esmola?
Sou terrivelmente contra. Serve para apaziguar a culpa pela nossa omissão. Sou
 de classe muito pobre, mas minha mãe proibia que aceitássemos qualquer coisa 
de alguém. Se não fosse isso, eu não estaria aqui, continuaria esmolando até hoje.
 Ela era lavadeira, empregada doméstica, sem escolaridade, mas nos ensinou a ter
 autoestima e incutiu na nossa cabeça que podíamos fazer o que quiséssemos,
 bastava querer. “Apanhando ou não, vai em frente. Não vai ser fácil, vai demorar
 um pouco mais, mas você consegue”. Não errou a mão, todos os filhos atingiram sua meta.

Você já foi vítima de preconceito?
No Brasil, todo negro vai ser vítima de racismo, preconceito, discriminação, esteja
 no patamar que estiver. Mas nosso preconceito é dissimulado e hipócrita. Já fui
 a shopping na Zona Sul e ouvi: “Esse pessoal pensa que isso aqui é quintal da 
Zona Norte.” Mas paro qualquer um com o olhar. Não me intimido. Há pouco,
 num shopping no Centro, meu filho disse: “Esse segurança fica atrás da gente
 o tempo todo.” Na época apareci muito por causa da internação compulsória,
 e falei em voz alta: “Ele me reconheceu, sabe que eu sou juíza e está prestando
 segurança.” Ele sumiu.

Você foi muito criticada na época do acidente que matou cinco jovens na Lagoa,
 ao dizer que os pais são negligentes, não vigiam seus filhos...
Fui mal interpretada. Não foi uma crítica àqueles que tinham perdido seus filhos,
 e, sim, ao que acontece na família moderna, que não impõe mais limites aos filhos.
 Dá mais trabalho, mas não se pode deixar entregue à babá e só seguir regras de psicólogo.
 Os pais não podem ir dormir sem saber onde estão e na companhia de quem estão seus
 filhos. Mas você acha que se eu tivesse medo de críticas teria sobrevivido?


Entrevista Publicada em 13/11/2011 na Revista O Globo

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