A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, comemora seu primeiro ano de vigência neste mês e a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, debate a aplicação dessa lei na justiça de nosso estado.
A lei, denominada Maria da Penha em razão da violência sofrida por uma mulher com esse nome
[1], apresenta um tratamento diferenciado para os casos de violência praticada contra a mulher no âmbito da família.
Como afirmou Rui Barbosa, na sua Oração aos Moços
[2], há que se tratar desigualmente os desiguais para alcançar a verdadeira igualdade. Por isso, a lei cria mecanismos tão-somente para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher e independentemente da classe, raça, etnia, orientação sexual, renda cultura, nível educacional, idade e religião da mulher vitimada.
O respaldo constitucional vem do disposto no art.226, § 8º da Constituição Federal que assegura especial proteção do Estado à família, por ser a base de nossa sociedade, assegurando assistência a cada um de seus membros e criando mecanismos para coibir essa violência no âmbito de suas relações.
Da mesma forma, baseia-se na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, que foi ratificada pelo Brasil em 1995. A mencionada Convenção possui força de emenda constitucional, nos termos do art.5º § 3º da constituição que torna equivalente a emendas constitucionais os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados pelo Congresso Nacional. Portanto, a Convenção deve ser entendida como norma constitucional.
Apresentado o respaldo legal, pois nosso direito se baseia no sistema romano-germânico que exige legislação para aplicação desta ao caso concreto, necessário recordar que o legislador produziu outras leis que conferem especial proteção a diferentes segmentos sociais face peculiaridades que apresentam. É o caso das leis especiais de proteção à criança e adolescente, além do Estatuto do Idoso. A criança merece ser protegida por ser um ser em formação e o idoso pela possibilidade de fragilidade e suscetibilidade pelo desgaste do passar dos anos.
A proteção especial à mulher tem origem na própria evolução legislativa dos direitos da mulher. O tratamento legislativo conferido no início do século passado à mulher era no sentido da tutela total por parte do homem, como numa relação de posse do homem sobre a mulher. Com a evolução social da mulher, a legislação reconheceu direitos, porém não deixou de apresentar proteções específicas quando há notório desequilíbrio.
A mulher vem sendo o sustentáculo das famílias durante muitos anos. Realiza o papel da cuidadora de filhos, marido ou companheiro, além de exercer a administração e cuidados da casa, exercer atividade remunerada para prover a família e procurar manter-se sempre com boa aparência. Esse empenho leva aprovações e reprovações pela sociedade no exercício do seu papel, porém sempre caracterizada a grande exigência e expectativa com relação ao papel que exerce.
Muitas justificativas são apresentadas para algumas agressões contra a mulher. Tanto pode incidir o preconceito se for dotada de beleza, pois sugere o papel de sedutora e infiel ao seu marido/companheiro, como também se não for bela, por não provocar a sedução deste.
Em alguns casos se trabalha fora e deixa de dar integral atenção ao marido e filhos, sofre a acusação de ser descuidada com a família. Se não trabalha fora é taxada de acomodada e de querer fazer o casamento uma instituição previdenciária. Tudo a colocar a mulher como culpada da agressão sofrida por parte do homem com quem convive.
Tantas cobranças conferem legitimidade a uma lei que vise amparar a mulher especificamente.
A lei Maria da Penha possui características muito especiais. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, já criados em nosso estado, possuem, de acordo com o disposto na lei, competência cível e criminal para o processamento, julgamento e execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Com relação à competência cível são especificadas medidas protetivas de urgência à ofendida e que obrigam o agressor, com especial proteção patrimonial, além de indenização por danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar.
As medidas protetivas típicas das Varas de Família implicam em afastamento do agressor do lar conjugal, como na separação de corpos, restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores e prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Poderão ainda ser vedadas a aproximação e contato com a ofendida e freqüência a determinados lugares pelo agressor.
Observe-se que deverá ocorrer o auxílio constante da equipe de atendimento multidisciplinar, integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde, para realizar laudos, trabalhos de orientação e encaminhamentos tanto do agressor como da ofendida e dos familiares envolvidos com o problema.
O órgão especial editou resolução determinando que, após o julgamento nos Juizados com aplicação de medidas protetivas de urgência próprias do direito de família, o processo seja distribuído a uma das Varas de Família competentes para eventual ação de execução.
Criar um local específico para a mulher buscar ajuda em momento tão difícil de sua vida, sendo recebida por mulheres como ela, facilita a comunicação.
Há enorme dificuldade em denunciar atos de violência praticados pelo homem com quem convive, muitas vezes pai de seus filhos e responsável por seu sustento. Ao tomar a decisão de contar para autoridades o que vem lhe acontecendo, a mulher precisa se sentir segura e amparada. Se não receber a devida proteção sofrerá mais violência.
Quando o juiz aplica as normas dispostas em lei limitadora, como a Lei Maria da Penha, está regulando, limitando, impondo um fim à tendência do homem a fazer da mulher objeto de suas atitudes destrutivas e compulsivamente repetidas que lhe conferem um prazer mórbido
[3].
A lei ainda tem muitos outros aspectos que deverão ser estudados e analisados. Com sua aplicação, pelos Juizados de Violência contra a Mulher e pelas Varas de Família, muitas outras questões surgirão, contudo o mais importante é buscar sua interpretação com base no disposto no art.5º da Lei de Introdução ao Código Civil: na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, norma absorvida pelo art. 4º da lei em debate, acrescentando que serão consideradas, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Aplicada a lei com observância destes princípios teremos o Poder Judiciário cumprindo objetivo constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária
[4].
[1] Maria Berenice Dias – A Lei Maria da Penha na Justiça, ed. RT
[2] “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem. Esta blasfêmia contra a razão e a fé, contra a civilização e a humanidade, é a filosofia da miséria, proclamada em nome dos direitos do trabalho; e, executada, não faria senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a organização da miséria. Mas, se a sociedade não pode igualar os que a natureza criou desiguais, cada um, nos limites da sua energia moral, pode reagir sobre às desigualdades nativas, pela educação, atividade e perseverança. Tal a missão do trabalho”- Oração aos Moços, Rui Barbosa.
[3] Lenita Pacheco Lemos Duarte – A Guarda dos Filhos em Litígio – Uma interlocução da psicanálise com o direito, ed. Lumen Juris
[4] Art. 3º, I da CF