terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Comentários às novas disposições legais sobre Guarda Compartilhada

Leia o artigo Decisões Judiciais no campo da bioetecnociência da mesma autora


Comentários feitos pela Juíza da 15a. Vara de Família da Capital do Rio de Janeiro, Maria Aglaé Tedesco Vilardo, à Lei com novas regras sobre a guarda compartilhada.

Altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação.
A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o  Esta Lei estabelece o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispõe sobre sua aplicação, para o que modifica os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil).
Art. 2o  A Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 1.583.  ......................;;;........................................
.............................................................................................
§ 2o  Na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos.
comentário: o Código Civil sempre afirmou que nada muda quando os pais se separam, exceto quanto ao tempo de convívio entre pais e filhos, pois deverá ser dividido o tempo em que a criança passa com mãe e com pai.
I - (revogado);
II - (revogado);
III - (revogado).
§ 3º  Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos interesses dos filhos.
comentário: não é a cidade em si que deverá ser considerada como melhor atendendo aos interesses dos filho, mas o genitor que melhor atender as necessidades e que representar a figura de afeto, segurança e garantia de convívio com o genitor não residente. Caso contrário poderá haver interpretação quanto a uma cidade ter mais recursos do que outro, o que desvirtuaria o instituto.
..............................................................................................
§ 5º  A guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos.” (NR)
comentário: supervisionar não é o verbo mais adequado para acompanhamento da criação de um filho. Aquele que não estiver residindo a maior parte do tempo poderá opinar na criação e nas decisões da vida do filho.  Não havia lei sobre mudança no poder familiar em decorrência de guarda unilateral, todavia a prática e o senso comum assim entendiam. A lei sobre guarda compartilhada esclareceu este aspecto. 
Solicitar prestação de contas não é comum e a previsão desta lei, na forma feita, poderá aumentar conflitos entre pai e mãe. A mãe costuma administrar a pensão e o pai poderá querer cobrar a prestação de contas como forma de pressão, ampliando o conflito. As decisões objetivas, como no exemplo em qual escola o filho irá estudar, terminarão sendo decididas pelo Juiz, pois o grau de incompreensão levará muitos genitores a ingressarem com esta ação. Tudo isso sempre foi possível pela lei, porém não ficava de forma tão explícita e era pouco utilizado.
“Art. 1.584.  ..................................................................
.............................................................................................
§ 2o  Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor.
comentário: a ausência de acordo nunca foi empecilho para fixar a guarda de ambos, que implica em exercício do poder parental pelo pai e pela mãe. Cabia ao Juiz explicar a guarda compartilhada e oferecer aos genitores. O que ocorre, na prática, é a resistência do genitor com quem a criança reside, temeroso das consequências em razão do desconhecimento.
Se um dos genitores disser que não quer a guarda compartilhada, mesmo após entender o seu significado, e concordar que fique com o outro genitor, caberá ao Juiz explicar que o poder familiar deste permanecerá.
§ 3o  Para estabelecer as atribuições do pai e da mãe e os períodos de convivência sob guarda compartilhada, o juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, poderá basear-se em orientação técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar, que deverá visar à divisão equilibrada do tempo com o pai e com a mãe.
comentário: Talvez tenha sido este o maior problema para implementação da guarda compartilhada. Estabelecer o tempo que cada genitor passará com o filho, detalhes de horários, buscando e levando das diversas atividades, marcar períodos de feriados, festas de aniversário, férias escolares, enfim, a rotina da criança, tudo isso é muito trabalhoso e detalhista. Há genitores que não conseguem estabelecer  nenhum contato e requerem ao Juiz que especifique todos os feriados e horários específicos, até prevendo atrasos para buscar ou entregar o filho. Este é o maior desafio da guarda compartilhada porque é diário. A escolha de escola ou médico, por exemplo, não são discussões diárias. Se o Juiz conseguir, com a ajuda do psicólogo ou assistente social, depreender a rotina da família (sim, uma família de pais separados, mas uma família) conseguirá implementar com segurança o compartilhamento.
§ 4o  A alteração não autorizada ou o descumprimento imotivado de cláusula de guarda unilateral ou compartilhada poderá implicar a redução de prerrogativas atribuídas ao seu detentor.
comentário: Na prática é necessário alterar uma ou outra previsão para adequar à realidade do dia a dia, porém é bom que  seja colocado em e-mail para que não se alegue posteriormente o descumprimento sem justificativa. A redução das chamadas prerrogativas é complicada na medida que o poder familiar estará sendo atingido. O Juiz deverá ponderar as vantagens e desvantagens para a criança e não somente pensar em punição do genitor que descumpre uma cláusula.
§ 5o  Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda a pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade.
comentário: esta medida sempre existiu, pois o cuidado é com a criança que deve ser protegida. Na prática muitas avós ajudam em questões nas quais o pai ou a mãe não conseguem cuidar dos filhos e assumem a guarda. Já há guarda compartilhada entre avós e tios, o que é totalmente possível fixar.
§ 6o  Qualquer estabelecimento público ou privado é obrigado a prestar informações a qualquer dos genitores sobre os filhos destes, sob pena de multa de R$ 200,00 (duzentos reais) a R$ 500,00 (quinhentos reais) por dia pelo não atendimento da solicitação.” (NR)
comentário: Já existe previsão legal na Lei de Diretrizes e bases da Educação, art. 12, VII, quanto às escolas prestarem informações a ambos os pais. Mesmo antes desta norma, bastava o Juiz oficiar determinando a prestação de informações.
Art. 1.585.  Em sede de medida cautelar de separação de corpos, em sede de medida cautelar de guarda ou em outra sede de fixação liminar de guarda, a decisão sobre guarda de filhos, mesmo que provisória, será proferida preferencialmente após a oitiva de ambas as partes perante o juiz, salvo se a proteção aos interesses dos filhos exigir a concessão de liminar sem a oitiva da outra parte, aplicando-se as disposições do art. 1.584.” (NR)
comentário: Aqui reside enorme problema que repercute especialmente na vida do pai e de forma negativa. O Juiz costuma temer o erro por ação ao determinar o convívio liminar, imediato, com o pai, autor de ação de regulamentação de visitação.  Todavia, há perigo muito maior em deixar de fixar, sem ouvir a outra parte, o tempo de convívio com o pai. Há processos sem liminar que o pai fica meses sem ver o filho, o que é lamentável. O erro por omissão da decisão liminar tende a causar graves danos na vida da família, da criança e daquele genitor sem convívio mínimo fixada, normalmente o pai. O Juiz deve estar atento à importância da liminar. O temor em fixar convívio com um pai negligente pode ser afastado pela manifestação da mãe, após a liminar. Caso não seja positivo o convívio o Juiz poderá ser avisado e revogar a liminar.
Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos:
I - dirigir-lhes a criação e a educação;
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;
V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;
VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.” (NR)
comentário: o poder familiar abrange cuidar e proteger o filho. O item V é uma novidade, pois implica no direito do genitor residente em gerir sua vida. É comum ação judicial para mudar de país, mesmo por pequeno período, porém para mudança de Município há menos pedidos. Isso porque um genitor pode viajar com seu filho pelo Brasil sem autorização do outro genitor, porém não pode viajar para o exterior sem estar autorizado pelo outro ou pelo Juiz. A situação determinando que estabelece a necessidade de consentimento é muito séria. Talvez consentir não seja o melhor, mas adequar o convívio à nova realidade. Se a criança tem a residência fixada com um dos genitores que pretende se mudar de cidade, o Juiz deve avaliar as vantagens para a criança em mudar o genitor residente. A vontade da criança deve sim ser considerada. É um equívoco achar que a criança não tem opinião e expressão próprias. Os profissionais sabem avaliar quando a criança está alienada ou sofre influencia negativa na tomada de sua decisão. O Juiz deve ouvir a criança, se achar necessário, pois há casos em que  a criança se manifesta de forma diferente perante este. O Juiz não está adstrito aos laudo psicológico ou social. Examinar o caso em suas peculiaridades será fundamental para a melhor decisão.
Art. 3o  Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 22 de dezembro de 2014; 193o da Independência e 126o da República. 
DILMA ROUSSEFF
José Eduardo Cardozo
Laudinei do Nascimento
Este texto não substitui o publicado no DOU de 23.12.2014
 *


Dilma sanciona sem vetos o texto que regulamenta a guarda compartilhada

leia a alteração da lei n.13058/2014


Texto havia sido aprovado no Senado no final de novembro.
Justiça deverá compartilhar guarda mesmo sem acordo entre os pais.


A presidente Dilma Rousseff sancionou, sem vetos, a lei que regulamenta a guarda compartilhada no país. A sanção foi publicada na edição desta terça-feira 23 do "Diário Oficial da União". A lei entra em vigor imediatamente.
A proposta estabelece que a Justiça deverá conceder guarda compartilhada aos pais mesmo quando não houver acordo entre eles quanto à guarda do filho. Pela lei que vigorava até então,  a guarda compartilhada era aplicada "sempre que possível". (Veja aqui perguntas e respostas sobre a nova lei).
O texto prevê que o tempo de convivência com os filhos deve ser dividido de forma "equilibrada" entre mãe e pai. Eles serão responsáveis por decidir em conjunto, por exemplo, forma de criação e educação da criança; autorização de viagens ao exterior e mudança de residência para outra cidade. O juiz deverá ainda estabelecer que a local de moradia dos filhos deve ser a cidade que melhor atender aos interesses da criança.
Pelo projeto, a guarda unilateral será concedida apenas quando um dos pais abrir mão do direito ou caso o juiz verifique que o filho não deva permanecer sob a tutela de um dos responsáveis. Neste caso, quem abrir mão da guarda fica obrigado a supervisionar os interesses da criança.
 site do Globo

O Impacto da adoção no desenvolvimento da criança

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.27 no.2 Lisboa  2013

  

O Impacto da adoção no desenvolvimento da criança1
The impact of adoption on child’s development

Joana Baptistaa*, Isabel Soaresb, Margarida Henriquesa
aFaculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto
bEscola de Psicologia da Universidade do Minho
*Autor para correspondência

RESUMO
Em comparação com os pares da comunidade, as crianças que foram adotadas enfrentam, com maior frequência, adversidade e risco nos primeiros tempos de vida, os quais se podem situar ao nível de complicações ao nascimento e de experiências de perda da família biológica, bem como ao nível do acolhimento em instituições caracterizadas por cuidados pouco responsivos. Nos últimos anos, clínicos e investigadores têm vindo a alertar para os efeitos negativos daquelas experiências no desenvolvimento da criança. Simultaneamente, a literatura tem vindo a reforçar a ocorrência de mudanças positivas em áreas diversas do desenvolvimento, após a integração numa família por adoção. Este artigo de revisão apresenta uma sistematização de resultados de estudos que analisaram o impacto da adoção, sobretudo internacional, no desenvolvimento físico, cognitivo, sócio-emocional e nos problemas de comportamento da criança que foi adotada.
Palavras-chave: adoção; crescimento; desenvolvimento; vinculação.

ABSTRACT
Compared with their peers, adopted children face, more often, adversity and risk in early life, namely in terms of complications at birth, loss of the biological family and the admission in institutional settings characterized by less responsive care. Over the past few years, clinicians and researchers have warned about the negative effects of those experiences in child development. Simultaneously, the literature has been reinforcing the occurrence of positive changes after adoption in several areas of development. This paper review presents a summary of the main empirical findings about the effects of adoption, especially international, in child’s physical growth, cognitive, socio-emotional development and behavioral problems in adopted children.
Keyword: adoption; growth; development; attachment

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Como fazer o Registro, no Brasil, do casamento realizado no exterior?

 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

E Quando se Descobre um Irmão Fruto da Traição Paterna à pessoa que você tanto ama, sua mãe?

Esta bonita crônica retrata o sentimento de quando se descobre que seu pai, seu herói, teve um relacionamento extra-conjugal e gerou um meio-irmão. O que fazer com a dubiedade de sentimentos?

Por Christiane Reis

Meio-Amor?


Tudo começou com o toque da campainha. Estava com a filha recém-nascida no colo e fazíamos um churrasco para comemorar o meu aniversário, o primeiro sem a presença física de  papai, como havia constatado logo que abri os olhos na manhã daquele dia.

Observei mamãe no portão da nossa casa com duas pessoas. Fez com que entrassem e eu imaginei que fossem vendedoras. A conversa estava demorando e, de repente, mamãe me pediu que entregasse o bebê ao pai e fosse até elas. Ao chegar, ouvi: Essa é a sua irmã!

Foi um susto, embora nós já soubéssemos da existência dessa meio-irmã, fruto de um relacionamento extra-conjugal  de papai. Não sabia o que fazer. Abracei-a. Era meu pai em forma de mulher. Idêntica. Teste de DNA pra quê?  A mais parecida com ele.

Chegou ali a procura do homem que não a registrou, não alimentou, não deu amor, nem colocou no colo. Foi em busca de um pai. Do meu, do nosso. Ele já não estava mais entre nós há alguns meses, feliz ou infelizmente. Não sei qual seria a reação da família diante do ato adúltero, de forma tão explícita. Era a traição em forma de filha.

Minha outra irmã não estava em casa. Quando abriu o portão para entrar com o carro, fui até ela, deixando a filha recém-nascida no colo da irmã recém-nascida (para mim), mamãe, e uma tia da moça. Antes que entrasse, ainda na rua, contei com poucas palavras o que estava acontecendo. Ela se sentou no meio-fio e chorou, um tanto indignada com a situação.


As apresentações foram feitas. Não sabíamos ao certo o que pensar, mas esperávamos o melhor. A avó e as primas foram chamadas, pois moravam perto da nossa casa. Então, em poucas horas, alguém entrou em nossa família. Isso normalmente demora nove meses para acontecer, mas para nossa nova irmã o tempo esperado foi de vinte e nove anos.

Minha mãe... Que ser humano! Recebeu a filha do marido morto como sua, parte dele, visita inusitada que o trazia de volta. Veio com a cor morena de índio, os cabelos negros, o formato do corpo e, para espanto nosso, o jeito daquele com quem nunca conviveu.

Ele falava nela quando bebia e as barreiras da censura eram derrubadas pelo álcool. Eu pedia que parasse, pois mamãe podia ouvir e não queria vê-la magoada. Sem dúvida, sofria por não poder agir com ela da mesma forma que conosco. Era um pai carinhoso, abraçava, beijava e dizia que nos amava o tempo todo. Imagino sua dor, ao arcar com as consequências dos deslizes cometidos, dos erros não reparados.

Estávamos em novembro. Ela e o marido, pouco mais de um mês depois, vieram passar o Natal conosco. Buscava família e encontrou. Era apresentada a cada um dos nossos amigos e parentes. Mamãe sempre com a cabeça erguida, mostrando a filha de papai. Como ela conseguiu? Lembro que não escondeu. Hoje, treze anos passados, ninguém se espanta mais. Acabou a novidade e as pessoas devem ter parado de comentar.

Nasceu minha sobrinha. Somos padrinhos da menina e mamãe a consagrou. A comemoração do batizado foi em nossa casa. A avó verdadeira eu nunca vi, mas sei que não se dão bem e minha irmã mais nova foi mesmo criada pela tia. Teve uma vida difícil, estudou pouco e nossas afinidades quase não existem. Permanece o laço de sangue.

A situação é difícil... Alguém cai de para-quedas em sua vida. Vocês não têm uma história, amigos, assuntos em comum. Só o pai. Basta? E o amor, por que não veio no mesmo embrulho? Não poderia ser instantâneo, à primeira vista, ao abraço inaugural. Não acontece assim, mas deveria.

Amanhã iremos nos reunir no apartamento da mamãe. Um almoço para celebrarmos antecipadamente o Natal, pois vai haver uma festa na rua onde mora minha meio-irmã, com a chegada do Papai Noel, então  nossa sobrinha-afilhada preferiu ficar lá, com os amiguinhos. Natural que seja assim.

Preferimos ficar ao lado das pessoas mais próximas, com quem temos uma intimidade maior. Essa intimidade também não nasceu entre nós, por faltarem os liames básicos, as longas conversas, as risadas espontâneas ao longo de uma história  que se cria a cada encontro. Faltam-nos, pois, as afinidades. Sem elas, relacionamentos verdadeiros não existem.

Gostaria que fosse diferente. Escolheria, se pudesse, ter amado essa irmã desde o primeiro dia, mas o que existe é um gostar, carinho, afeição, cumplicidade no sentido de que se precisarmos uma da outra, sabemos poder contar, mas pra mim isso ainda é pouco. Amaria intensamente, se pudesse, como a irmã criada comigo, os primos e os amigos de longa data.

Como não costumo desistir de ninguém, espero que ao longo dos anos - e com uma vontade maior - o laço de sangue faça também valer sua força e germine esse sentimento que deveria ter sido herdado, recebido geneticamente, transmitido como tantas outras características, do nosso - preciso lembrar que o pronome correto é esse, não “meu” - pai. Para isso, é preciso confiar no tempo ou deixar que tudo se mantenha como está: morno, um meio-amor entre meio-irmãs.


A História estuprada do Brasil



Por Douglas Belchior


Vivemos tempos de questionamentos. De enfrentamento aos privilégios. De contestação de poderes. De autocrítica.

Enquanto homem, é preciso reconhecer o papel histórico criminoso de nosso gênero na história da humanidade. Aliás, mais que reconhecer em discursos, enfrentar o enorme desafio da mudança das práticas.

Valdson Almeida, maranhense radicado em São Paulo, estudante de pedagogia, escritor esporádico e pseudo cinéfilo, sintetizou em poucas e fortes palavras, a incidência violenta e assassina do machismo na história do Brasil.


tres brancos e uma escrava

Por Valdson Almeida

A história estuprada do Brasil

Corre mata adentro, cansada, ofegante, vencida.

É o bandeirante desbravador estuprando a índia. E é ela a selvagem, claro!

Tapa a boca, escraviza a alma. Chora, vendida.

É o senhor da casa grande, proprietário de carne, estuprando a negra na senzala. E é ela a escória, claro!

É o militar patriota estuprando a comunista subversiva nos porões da ditadura. E é ela a ameaça ao país, claro!

É o policial vestido de hipocrisia que atende a mulher violentada agora há pouco, perguntando que roupa ela usava na hora do ocorrido. E é ela que se veste errado, claro!

É o pai de família que faz sexo com a esposa indisposta. Mas isso não é estupro, é só sexo sem consentimento mútuo, claro!

É o macho alfa que estupra corretivamente a lésbica “mal comida”. E é ela a doente que precisa de cura, claro!

É o aluno de medicina, estudante da “melhor universidade da América latina”, que estupra a caloura bêbada. E é a denúncia dela que mancha o nome da Universidade, claro!

É o político defensor dos “bons costumes” que só não estupra a deputada porque ela ‘não merece’. Ufa, pelo menos alguém sensato nessa história violentada do Brasil.


do site negrobelchior.cartacapital.com.br