autora: Maria Aglaê Tedesco Vilardo
Os processos de requalificação
civil de transexuais têm sido recebidos pelo Poder Judiciário apesar de não existir
lei brasileira sobre o tema.
Há ações propostas pelo Núcleo de
Defensoria Pública e outras com advogados constituídos. A competência deve ser
da Vara de Família, conforme vem sendo decidido por jurisprudência.
Os pedidos são para mudança de nome
e de sexo no registro civil e muitas ações são propostas sem que tenha sido
realizada a cirurgia de transgenitalização, mas sempre com a utilização de hormônios
e o acompanhamento psicológico e social.
Os juízes são obrigados a decidir
mesmo sem lei, desta forma buscam fundamentação na Constituição e argumentos da
bioética para as sentenças.
Um dos fundamentos é a Portaria do
Ministério da Saúde nº 2803/2013 que trata do processo transexualizador que
estabelece normas de saúde e atenção especializada a serem oferecidos pelo SUS.
Devem ser oferecidos acompanhamento clínico pré e pós operatório e
hormonoterapia, em diversas especialidades médicas, com psicólogo e assistente
social. Para a redesignação sexual no sexo masculino há previsão de amputação
do pênis e constituição de neovagina,
entre outras cirurgias. Para o procedimento em indivíduos do sexo biológico
feminino há previsão de mastectomia e ressecção do útero e ovários. A cirurgia
para constituição de órgão para o transexual masculino não ocorre no âmbito do
SUS.
O Poder Judiciário não deve obrigar
o indivíduo a realizar a cirurgia. O processo transexualizador nem sempre pode
alcançar a constituição de neovagina. Ou por problemas fisiológicos ou por ausência
de desejo do transexual em ser mutilado. Caso esta fosse a condição para a
requalificação civil estariam sendo discriminados os transexuais masculinos,
pois a cirurgia é extremamente complexa e não é oferecida pelo SUS. Os
transexuais femininos, quando desejam a cirurgia, não conseguem ser
contemplados com a agenda oferecida pelo SUS, com poucas marcações de cirurgias.
Entretanto, obrigar alguém a se mutilar para obter a requalificação seria ferir
o princípio bioético da não maleficência.
Outra fundamentação para os juízes
é a Resolução nº 1955/2010 do CFM, uma norma ética para os profissionais
médicos, que na omissão legislativa ampara as sentenças. Nesta há previsão de que esteja presente o desconforto com sexo
biológico, o desejo de perder suas características sexuais e ganhar as do sexo
oposto durante dois anos e a ausência de transtornos mentais. Nesta resolução a
cirurgia de neofaloplastia é considerada experimental. A cirurgia de
neocolpovulvoplastia é autorizada expressamente. Caso o Poder Judiciário exija
a cirurgia para redesignação haveria notória discriminação de gênero em face do
transexual masculino, raramente podendo alcançar a redesignação civil, o que
fere o princípio constitucional da igualdade.
O tema é complexo e não fazia parte
da formação dos juízes mais antigos. Hoje a Escola da Magistratura do Rio de
Janeiro oferece no curso de Direito de Família aulas com professores
especializados sobre o tema.
Algumas exigências vêm sendo
superadas como exigir certidões negativas
dos cartórios, pois não teria fundamento, caso viessem com restrições, impedir
a mudança no registro em razão destas.
O que se exige, primordialmente, é
a vinda do histórico de acompanhamento médico, psicológico e social para a
decisão favorável.
No Brasil, ainda não se pode
realizar a mudança no cartório civil em razão da falta de legislação, porém o
Judiciário vem tratando do tema com sensibilidade e oferecendo a formação
continuada dos juízes para que possuam a compreensão bioética do tema, com base
nos fundamentos constitucionais da igualdade e da não discriminação. No futuro, os legisladores deverão possibilitar seja feito dessa forma, como em diversos outros países.