domingo, 7 de julho de 2013

Poderosa demais



  Por ser bela, rica e famosa, Luana Piovani não seria ‘oprimida e subjugada’ o bastante para ter direito à proteção da Lei Maria da Penha, entendeu juiz
Debora Diniz - publicado no jornal Estado de SP
Luana Piovani é uma atriz. E, ainda, uma mãe bonita, jovem e famosa. O desembargador Sidney Rosa da Silva preferiu descrevê-la como uma personagem na sentença em que negou o pedido de proteção contra o ator Dado Dolabella. O papel foi traçado como quem escreve uma novela: nele, Piovani seria uma mulher “nunca oprimida e subjugada aos caprichos do homem”. Como mulher poderosa, parece que sua ação penal desafiou não só seu ex-companheiro, mas também o representante da Justiça, que considerou não ser aplicável a Lei Maria da Penha a mulheres como ela. Não é a primeira vez que a atriz se vê confrontada com essa negação do feminino ao apresentar-se como vítima na vida real. Em uma recente controvérsia em sua conta no Twitter, um dos fãs de Dolabella teria dito “homem de verdade não bate em mulher de verdade”. “Verdade” era uma ironia à alegação de Luana de que teria sido vítima de violência de gênero. Só mulheres de verdade poderiam ser protegidas pela Lei Maria da Penha, disseram os novos especialistas em direito penal. Se há uma verdade nessa controvérsia, é que a lei não impõe condicionalidades às mulheres: todas devem ser igualmente protegidas.
Piovani. Emancipada, é ela que pode denunciar a persistência da violência masculina - Carlos Zambrotti e Philippe Lima/AgNews
Carlos Zambrotti e Philippe Lima/AgNews
Piovani. Emancipada, é ela que pode denunciar a persistência da violência masculina
Não sei bem o que seria uma mulher de verdade, mas me esforçarei por interpretar os rastros deixados pela sentença. A discussão não é a anatomia de Luana, mas suas performances de gênero, como diriam algumas feministas. A ação penal de 2008 acusa Dolabella de tê-la agredido em uma boate; entre os dois haveria ainda Esmeralda de Souza, a camareira também agredida por ter se lançado para proteger Luana. Há imagens da cena, o que retira da discussão a pergunta sobre a verdade da violência. O que resta é saber como qualificar Luana: uma vítima sem gênero para o direito penal ou uma mulher de verdade para efeitos da Lei Maria da Penha? A decisão do desembargador, com uma verve de especialista em desigualdade de gênero, foi clara: “O campo de atuação da respectiva lei está traçado pelo binômio hipossuficiência e vulnerabilidade”. O sentido dicionarizado da palavra “binômio” deixa a classificação de mulher de verdade ainda mais curiosa: “Nome científico composto por dois nomes; um substantivo que designa o gênero e um adjetivo que designa a espécie”.
Sob o risco de me equivocar na ordem criativa do desembargador, imagino que o substantivo seja “hipossuficiência”, e o adjetivo, “vulnerável”. As mulheres como gênero humano teriam que ser pobres e dependentes dos homens. Luana provoca essa descrição do feminino, pois é rica e poderosa. Como espécie desse gênero, teria ainda que ser vulnerável. Vulnerável é daqueles adjetivos multiuso: descrevem tudo e todas, ao mesmo tempo que são escorregadios. No campo dos estudos de gênero, vulnerabilidade é a condição do feminino em sociedades com tramas diversas de patriarcado. Luana pode ser rica, mas seu corpo é vulnerável à dominação masculina. Não é à toa que sofreu agressões. Sua independência não foi capaz de blindar o seu corpo a quem crê poder discipliná-la pela violência. Parece-me ser esse o ponto esquecido pela equivocada sociologia de gênero da sentença: Luana subverteu o status de subalternidade do feminino, mas não emudeceu a ordem política que a reduz a um ser da espécie vulnerável.
Mas o conteúdo da decisão judicial prossegue na enviesada sociologia de gênero que fundamentaria a interpretação da Lei Maria da Penha. Seria preciso ainda que o ato violento tivesse ocorrido em âmbito doméstico e por alguém em relação de afetividade estável. A agressão se deu em uma boate, um espaço ambíguo para a moral que persegue as mulheres de verdade; além disso, Luana e Dolabella não viviam uma relação estável, mas de afetividade ocasional. Ora, a lei não exige nem casamento nem tampouco casa como condicionantes para sua aplicação. Essa perturbação interpretativa provocada pela figura de Luana não deve ser entendida como um curto-circuito isolado, mas como um indicador do perfil de quais seriam as mulheres enquadradas no qualificador de vítimas: somente aquelas pobres, dependentes e subjugadas à casa.
As mulheres são diferentes entre si. Muitas delas são representantes do gênero hipossuficiente, mas todas são da espécie vulnerável. Luana é rica, bonita e famosa, mas nem por isso conseguiu escapar da perversidade da violência de gênero. Ela foi agredida por um homem de suas relações de intimidade e afeto – duas variáveis esquecidas pelo desembargador, que anuncia que o uso universal da Lei Maria da Penha inviabilizaria os Juizados de Violência Doméstica e Familiar. Não sei como proteger Luana causaria tamanha catástrofe, pois é exatamente pelo rosto famoso e de mulher emancipada que é possível escandalizar a persistência da violência de homens contra mulheres. Ao contrário do que imagina o desembargador, precisamos de mulheres ricas e famosas que denunciem quanto a vulnerabilidade do feminino não depende apenas da classe social, mas da espécie que representamos.
*DEBORA DINIZ É ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

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