segunda-feira, 28 de julho de 2014

A Primeira Mulher Advogada - As mulheres advogadas: preconceitos e debates.



No início do século XX as mulheres tinham poucos direitos consolidados. A República não havia reformulado questões relativas aos direitos civis, cujo código só em 1917 foi aprovado. Mesmo aquelas que pretendiam estudar, e conseguiam excepcionalmente entrar em alguma faculdade, o faziam sem nenhuma certeza que depois poderiam ter uma vida profissional independente.

 

Myrthes Campos nasceu na cidade de Macaé, Rio de Janeiro, em 1875. Estudou no Liceu de Humanidades de Campos, interessando-se precocemente pelo estudo das leis, mas enfrentado uma negativa da própria família para prosseguir nos estudos, até o nível superior. No século XIX havia uma resistência muito grande em relação às mulheres que pretendessem preterir suas atividades familiares, como mãe ou esposa, para se tornarem profissionais, trabalhando fora dos limites domésticos. No entanto, Myrthes conseguiu bacharelar-se na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro, então capital federal, em 1898. A família, de alguma forma, tinha-se convencido da sua demanda.

 

Depois de formada, o problema agravou-se. Teve que enfrentar uma série de entraves que eram comuns em relação às mulheres que tinham o pioneirismo de realizar um curso universitário. Primeiramente seria necessário obter o reconhecimento de seu diploma, e depois dar um passo a mais: legitimar-se profissionalmente, isto é, ser aceita no Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros (IOAB), fato inédito para uma mulher brasileira.

 

O pioneirismo de Myrthes foi acompanhado por algumas mulheres que fizeram estudos universitários, inclusive os cursos de Ciências Jurídicas no Brasil, como foi o caso de Maria Fragoso, Maria Coelho e Delmira Secundina que se formaram em Recife, em 1888, e em 1889, na mesma cidade, Maria Augusta C. Meira Vasconcelos. No entanto, o projeto de Myrthes era mais arrojado, pois ela pretendia trabalhar como advogada, envolvendo-se, portanto, em uma luta mais difícil, sobretudo quanto à resistência inicial para a formalização de seus direitos profissionais. Primeiro trabalhou na Secretaria da Corte de Apelação do Distrito Federal, e posteriormente no Tribunal da Relação do Estado. No IOAB enfrentou as negativas do desembargador José Joaquim Rodrigues, mas não se deixou intimidar pelas recusas iniciais.

 

Por volta de 1905, o IOAB, que desde a sua origem só tinha abrigado bacharéis do sexo masculino, defrontou-se com uma nova realidade social. Era um momento de mudanças mesmo para a sede do Instituto estava se deslocando para um novo prédio. Nas fontes disponíveis, não encontramos a data precisa da transferência do Instituto e da respectiva biblioteca para a ala direita do Silogeu. Tudo leva a crer que tenha se efetivado entre o final de 1905, e o começo de 1906, pois no Relatório do ministério da Justiça relativo àquele exercício, na listagem dos próprios nacionais, consta o registro do Silogeu Brasileiro, como edifício moderno e ocupado.  Por outro lado, revendo a documentação desse período, fica evidente que a plenária do IOAB mostrava-se muito envolvida na discussão de um assunto, bem mais palpitante do que a mudança para a nova sede. Tratava-se de mais uma tentativa de admissão de um bacharel do sexo feminino, a advogada Myrthes Gomes de Campos.

 

Este fato está profundamente relacionado à criação das Faculdades Livres de Direito que favoreceu o acesso de moças aos bancos acadêmicos. No âmbito do Instituto, em 1888, segundo Tânia Rodrigues de Araújo, na obra As mulheres na carreira jurídica, ensaiou-se até um breve debate se a mulher graduada em Direito deveria ou não exercer a magistratura. Contudo, o assunto não foi adiante, ao que parece, devido à forte influência maçônica que dominava a corporação na época.

 

Na verdade, a querela em torno da candidatura da Dra Myrthes ao Instituto já tinha antecedentes, quando em 1899 tinha feito a primeira demanda. Já diplomada em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade Livre de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, na turma de 1898, a jovem requereu ingresso na classe dos sócios estagiários, uma categoria recém criada no grêmio, aberta aos bacharéis que tivessem menos de dois anos de exercício na profissão. Naquela ocasião, a Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência pronunciou-se a favor da candidata, considerando que:

 

(...) não se pode sustentar, contudo, que o casamento e a maternidade constituam a única aspiração da mulher ou que só os cuidados domésticos devem absorver-lhe toda atividade. (...) Não é a lei, é a natureza, que a faz mãe de família.  (...) liberdade de profissão, é, como a igualdade civil da qual promana, um princípio constitucional (...) a mulher casada sofre restrição na sua capacidade jurídica, a mulher livre, não; esta tem a plenitude de todos os direitos que lhe são inerentes, mas a incapacidade da mulher casada não é absoluta, cessa com a autorização marital (...) nos termos do texto do art. 72, § 22 da Constituição o livre exercício de qualquer profissão deve ser entendido no sentido de não constituir nenhuma delas monopólio ou privilégio, e sim carreira livre, acessível a todos, e só dependente de condições necessárias ditadas no interesse da sociedade e por dignidade da própria profissão; (...) o direito de advogar é um direito civil e, portanto ninguém pode ser privado de exercer a advocacia se exibe título de capacidade ou habilitação, sem que a lei tenha expressamente estabelecido as causas de incapacidade, em que se achar compreendido; (...) não há lei que proíba a mulher de exercer a advocacia e que, Importando  essa proibição em uma causa de incapacidade, deve ser declarada por lei (...)

 

O parecer, muito bem fundamentado por sinal, foi impugnado pelo Dr. Carvalho Mourão na plenária do Instituto. De nada adiantaram os esforços de outros sócios como o Barão de Loreto, Baptista Pereira e João Evangelista Sayão Bulhões de Carvalho, membros da Comissão de Justiça, para reverter o quadro. As opiniões se dividiram e a polêmica se instaurou. Melhor dizendo, deixou a sala de sessões do IOAB para continuar nas páginas do Jornal do Commércio, com a publicação de um artigo, assinado por Carvalho Mourão, em que repudiava a opinião dos confrades.

 

No arrazoado, o jurisconsulto, dentre outras alegações, declarava que as leis, (...) segundo o costume e a tradição, não permitiam à mulher exercer a profissão de advogado - ofício que a lei romana classificava de viril. Arrematando a censura, fazia uma advertência aos três integrantes da Comissão de Justiça, por ousarem admitir que até mesmo a mulher casada poderia advogar, quando autorizada pelo marido: (...) sejam coerentes; reclamem a abolição do poder marital (...) E assim teremos uma sociedade sem autoridade, o ideal da anarquia no lar. A tanto chega a virulência orgânica, inata, inata, corrosiva, da opinião dos feministas.

 

As premissas levantadas por Carvalho Mourão acabaram prevalecendo no IOAB e o parecer da Comissão de Justiça foi rejeitado pela assembléia dos sócios, por dezesseis votos contra onze, demonstrando, no entanto, que havia uma divisão significativa, pois a proposta de ingresso de Myrthes perdera por apenas 5 votos.  A Dra. Myrthes Campos, entretanto, mostrava-se disposta a enfrentar os romanistas da corporação. Estabelecida com escritório à rua da Alfândega nº 83, conseguira ser admitida no Tribunal do Júri, tornando-se assim a primeira mulher a exercer a profissão de advogada no Brasil. Também escrevia para jornais de época, e suas participações em defesas chamavam muito público, curioso de assistir ao desempenho da causídica. De qualquer modo, a questão permaneceu latente, sendo retomada com vigor, alguns anos mais tarde, quando a Dra. Myrthes voltou a requerer ingresso na Casa de Montezuma, desta feita candidatando-se ao quadro dos sócios efetivos.

 

Como já mencionamos, a proposta deu entrada em 1905 e, ao invés de ser submetida à apreciação da Comissão de Sindicância, encarregada de analisar os pedidos de admissão de sócios, sorrateiramente foi remetida à Comissão de Justiça, a pretexto de dirimir uma velha dúvida: se a mulher legalmente diplomada pode exercer a advocacia. Os integrantes desta Comissão, por sua vez, protelaram o exame da questão por sucessivas vezes, alegando os mais diversos motivos. A tal ponto, que na sessão de 26 de abril de 1906, o Dr. João Marques solicitou ao presidente do Instituto que intercedesse junto à dita Comissão, nos termos regimentais, a fim de que apresentasse o respectivo parecer.

 

Reascendeu-se a polêmica. Os tradicionais argumentos do Dr. Carvalho Mourão, mais uma vez, foram usados de escudo para aqueles que se opunham à presença feminina na corporação. No fundo, a discussão servia tão somente de pretexto para postergar a decisão sobre o caso, pois era fato que a Dra. Myrthes há muito que militava no Tribunal. Dentre outras vitórias ali obtidas, em 1906, defendera e ganhara uma causa importante, derrotando um promotor considerado invencível. O certo é que os debates alongaram-se por um bom tempo, e uma nova comissão foi constituída para solucionar o problema.

 

Finalmente, após três meses de impasse, a Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência concluiu o óbvio, ou seja, de que (...) Não há lei que proíba a mulher de exercer a advocacia. Mesmo assim, a tese não foi aceita por unanimidade. Ao ter seu nome submetido pela segunda vez à assembléia do IOAB, em 28 de junho de 1906, recebeu aprovação por dezesseis votos contra dez, com voto em separado do Dr. Carlos de Gusmão.

 

O resultado, porém, não encerrava a demanda da Dra Myrthes. Apenas abria caminho para que o seu requerimento de admissão viesse a ser examinado pela Comissão de Sindicância. Mas o jogo prometia novos lances, agora por meio de um indicativo do Dr. Carlos de Gusmão, a respeito da mulher casada advogada. Tentava-se, deste modo, obstruir a pauta das sessões e deixar o caso em suspenso, mais uma vez.

 

Os partidários da presença feminina no Instituto, entretanto, mostraram-se mais diligentes do que supunham os seus adversários. Ou melhor, já conheciam suas estratégias. Osfeministas desencadearam uma verdadeira operação de guerra. Em duas semanas conseguiram obter o parecer favorável da Comissão de Sindicância, arregimentaram forças e submeteram a proposta da advogada à plenária do Instituto na sessão de 12 de julho de 1906. Os esforços foram recompensados. Basta dizer que compareceram àquela sessão trinta e oito sócios, número recorde em relação à freqüência habitual. A assembléia aprovou por vinte e três votos contra quinze, o ingresso da Dra Myrthes Gomes de Campos no quadro efetivo da Casa de Montezuma.

 

A chegada da Dra Myrthes deu ensejo a outros debates que de alguma forma envolviam a questão da mulher na sociedade brasileira.  Temas como divórcio, trabalho feminino, caixas maternidade, trabalho infantil e regularização do trabalho em geral se tornaram práticas cotidianas.

 

Por outro lado, o estabelecimento do Instituto no Silogeu, onde também se localizavam agremiações congêneres, propiciou a abertura de novas frentes de atuação. A proximidade da Academia Nacional de Medicina ensejou a apresentação de um projeto de trabalho conjunto (...) para o exame e estudo dos serviços médicos legais (...). O tema foi considerado relevante, tendo em vista o atraso de tais serviços no Brasil, e constituído um comitê especial encarregado de analisar a viabilidade da proposta.  

 

A idéia da parceria parece ter sido bem recebida entre os discípulos de Hipócrates. O presidente da Academia Nacional de Medicina, Dr. Azevedo Sodré, fez questão de comparecer ao IOAB para assistir a uma sessão ordinária e, aproveitando a ocasião, convidou os advogados a participarem da solenidade de aniversário do tradicional reduto científico. A troca de gentilezas entre os vizinhos do Silogeu prosseguiu, porém, lamentavelmente, na documentação do Instituto não há maiores informações sobre o andamento daquele projeto. Há registro apenas da votação de um volumoso relatório, apresentado pelo sócio Dr. Isaías Guedes de Mello, com o diagnóstico da precária situação dos serviços de medicina legal no país e sugestões para aprimorá-los.

 

Reconhecido pelos órgãos do governo, aplaudido por sua atuação acadêmica, prestigiado pela sociedade carioca e localizado noSilogeu Brasileiro, o Instituto da Ordem dos Advogados não apenas rejuvenesceu, segundo as palavras do Dr. Moitinho Dória, como também readquiriu o seu lado charmoso, por assim dizer. É bem verdade que nos primeiros anos do século XX os associados já não compareciam mais às sessões trajando casaca, camisa de peito duro e gravata plastron, indumentária típica do Segundo Reinado. Em tempos republicanos, adotaram figurinos mais leves e democráticos, como o paletó de casemira clara e o chapéu de palha, embora nas cerimônias oficias continuassem a envergar vestes talares, privilégio concedido por D. Pedro II.

 

Convites para participar de atos cívicos, solenidades públicas, inaugurações, banquetes e outros acontecimentos do gênero faziam parte do cotidiano do grêmio. Convocado pelo presidente Rodrigues Alves, o Instituto nomeou uma comissão de sócios para assistir às festividades do dia 7 de setembro de 1904, quando se inaugurou o eixo principal da nova avenida Central, hoje Rio Branco, símbolo da modernização do país. Aliás, os filiados do IOAB podiam ser vistos com assiduidade nas recepções oficiais da presidência da República. Isto sem falar nos famosos banquetes oferecidos no Palácio do Itamaraty pelo Barão do Rio Branco, titular da pasta das Relações Exteriores. Festas, vale acrescentar, cujos convites eram disputadíssimos pela alta sociedade carioca, conforme revela o advogado e escritor Rodrigo Octávio, no livroMinhas memórias dos outros .

 

Por ocasião da Conferência Pan-Americana, realizada no Rio de Janeiro em 1906, o Instituto além de ceder suas dependências e de receber convidados internacionais, integrou-se à ciranda de homenagens ao secretário de governo norte americano Elihu Root, principal personalidade estrangeira presente ao evento, conferindo-lhe ainda o título de sócio honorário. A corporação também se fazia notar em cerimônias religiosas, concertos e exposições de obras de arte, a exemplo da mostra do famoso pintor português José Malhoa organizada pelo Real Gabinete Português de Leitura, em 1906.  Como se vê, o Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros ocupava lugar de destaque na agitada vida social do Rio de Janeiro da belle époque.

 

Mas as festas e amenidades, vez por outra, davam lugar a escaramuças jurídicas.  A questão levantada sobre o direito dos advogados e dos magistrados a tratamento especial, quando submetidos à prisão preventiva, ensejou uma disputa envolvendo sócios Drs. Carvalho Mourão, Lima Drumond, Nodden Pinto e Solidonio Leite.

 

Para Carvalho Mourão, a concessão de tal prerrogativa era inconstitucional, ao passo que outros três jurisconsultos sustentavam tese oposta. A divergência se encerrou com um parecer de Theodoro Magalhães, que acabou contentando a gregos e troianos, ou seja, de que (...) a igualdade dos cidadãos perante a lei não pode ser entendida em termos absolutos. Assim, concluiu o Dr. Magalhães, o privilégio não deveria ser suprimido, mas sim estendido (...) a outras classes de cidadãos como o médico, o banqueiro e o industrial (...) não há motivo para exclusivismos e a medida deve ser geral, atenta as condições humilhantes em que fica o cidadão de certa importância e serviços, quando recolhido à detenção, (...)

 

Outra discussão memorável girou em torno da questão se (...) é lícita presença de símbolos religiosos nas dependências dos tribunais, perante os princípios firmados pela Constituição Federal. O assunto veio à baila a propósito da conduta do juiz de direito da 5º Vara Criminal do Distrito Federal, que recolheu da sala das sessões do júri a imagem de Cristo crucificado - atitude que foi duramente censurada pelo Dr. Pinto Lima, em sessão do Instituto.

 

As opiniões se dividiram. A Carta de 1892 estabeleceu, efetivamente, a separação entre a Igreja e o Estado. Neste sentido, havia quem tomasse o dispositivo ao pé-da-letra. Outros reconheciam o princípio, mas não aceitavam o comportamento do magistrado, justificando que não se poderia desprezar a tradição católica do país. Uma terceira corrente tentava conciliar as duas posições. A discussão prosseguiu animada por um bom tempo, mas os jurisconsultos não chegaram a um acordo, terminando por deixar a questão em aberto.

 

Aliás, o mesmo ocorreu em relação ao indicativo sobre a introdução do divórcio no Brasil.  Tema que, sem dúvida, desencadeou a mais extensa e disputada polêmica no IOAB, no período aqui estudado. Basta dizer que superou até o longo debate ali travado, a respeito do ingresso de mulheres na corporação.

 

A contenda se iniciou na sessão de 16 de maio de 1907, quando o Dr. Marcílio Teixeira de Lacerda, encarregado de estudar a questão, expôs o seu relatório, defendendo a necessidade da instituição da lei do divórcio. O Dr. Marcílio iniciou sua intervenção qualificando a causa de nobre e patriótica:

 

(...) Nobre porque representava a libertação do Prometheu acorrentado da sociedade, os quais como o personagem da tragédia grega (...) clamam por justiça e pedem liberdade! (...) Mas tudo em vão, porque o vozerio estonteante do preconceito domina o grito dos oprimidos e o egoísmo dos bem casados é surdo às súplicas dos infelizes. (...) Patriótico, porque é a consubstanciação de uma das mais altas aspirações nacionais (...) um desejo afagado pela maioria da nação...

 

Mal havia pronunciado essas palavras introdutórias, Teixeira de Lacerda foi interrompido por intervenções dos sócios Esmeraldino Bandeira e Pinto Lima. A muito custo, tantos foram os comentários, ele conseguiria levar adiante a leitura e concluir seus argumentos. A resposta ao relatório veio de Pinto Lima:

 (...) Sua Ex., diz o orador, dá como fim do casamento a cópula carnal, contra isso protestava, pois aceitava a carapuça de bem casado sem que com isso fosse egoísta; diz que o fim do casamento é a troca de afeto, o convívio do lar (...) a palavra casamento significa um laço indissolúvel e por isso não pode ser um contrato, que é temporário (...) O orador entra em várias considerações para demonstrar a inconveniência do divórcio, a que chama um mal necessário, mas, como só uma minoria dele necessita, a maioria não pode ser coagida a aceitá-lo; quais, pergunto serão os pais dos filhos de uma mulher divorciada muitas vezes e outras tantas casadas?

 

Ao final desta réplica, a sessão teve de ser interrompida, face o número de inscrições para apartes. Instalou-se a contenda, com a formação de dois partidos e a sala das sessões do Instituto transformou-se em uma arena: de um lado, perfilaram-se os sócios favoráveis à instituição do divórcio, capitaneados por Teixeira de Lacerda; de outro, aglutinaram-se os que eram contrários, sob a liderança de Pinto Lima. No primeiro grupo, ocupavam posição de destaque Deodato Maia, Myrthes Gomes de Campos, Avelar Brandão e Gastão Victória. No segundo, salientavam-se Esmeraldino Bandeira, o Visconde de Ouro Preto, Taciano Basílio e Octacílio Câmara. Este último, inclusive, declarava combater o divórcio sustentando-se na doutrina filosófica de Augusto Comte:

 

(...) por princípios utilitaristas; escudado no positivismo comtista repele as conclusões da tese que (o divórcio) viria dar alforria à pretendida escravização da mulher, porquanto no seu entender a incapacidade da mulher casada é decorrente do poder marital, (...) chama de utopia o feminismo que pretende dar à mulher outras funções que não as do lar.

 

As duas facções se mostravam igualmente aguerridas e as escaramuças prosseguiriam, com réplicas e tréplicas a cada sessão. É bem verdade que, por esta ocasião, o tema do divórcio andava na ordem do dia no Rio de Janeiro, discutido tanto nas esquinas, quanto nos salões mais aristocráticos. Não se falava de outra coisa na cidade, desde que a conhecida revista Kosmos começou a publicar a novela A Divorciada, de Cunha de Mendes.

 

Ao que parece, a desventura amorosa dos heróis da novela - Paulo Leão e Arlinda, a divorciada, deram um novo ânimo à facção do Dr. Teixeira de Lacerda. Eles conseguiram aprovar na plenária do IOAB um indicativo, para que fosse nomeada uma comissão especial, encarregada de formular um projeto de lei, com vistas à Câmara dos Deputados, (...) que estabeleça o divórcio com a dissolução do vínculo conjugal, a ser encaminhado ao poder legislativo.

 

O certo é que a questão permaneceu na pauta de todas as sessões do Instituto até o final de 1907, quando se estabeleceu uma espécie de trégua entre os litigantes.  A discussão foi suspensa em nome de um assunto da mais alta prioridade: a contribuição do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros aos festejos que o governo tencionava promover em 1908, para celebrar a passagem do centenário da “Abertura dos Portos”.

 

Pouco explorado pela historiografia, talvez porque não tivesse suscitado brilhantes intervenções ou polêmicas, há um conjunto de propostas que foram apresentadas no Instituto da maior relevância, a exemplo de um projeto oferecido pelo Dr. Deodato Maia, na sessão de 6 de julho de 1911, para a regulamentação do trabalho das mulheres e dos menores na indústria e no comércio.

 

O Dr. Deodato fundamentou o seu projeto em uma simples constatação: na legislação brasileira não havia nenhum dispositivo que tratasse daqueles assuntos. Assim, indicou que o Instituto representasse ao governo no sentido de estabelecer normas que protegessem a mulher e o menor trabalhadores. Complementando a proposição, sugeria, ainda, a criação de um Departamento Geral do Trabalho, com as seguintes finalidades: 1º coordenar e publicar todos os dados relativos ao trabalho; 2º organizar o Código do Trabalho; 3º difundir e propagar a criação de institutos de previsão e mutualismo, destinados aos socorros mútuos os operários e suas famílias, especialmente às caixas de maternidade. Caberia, ainda, ao órgão zelar pela execução das leis do trabalho[33].

 

No projeto, na parte relativa às crianças e aos adolescentes, dentre outras disposições, fixava em dez anos, a idade mínima para o ingresso no mercado-de-trabalho. A jornada de trabalho dos menores entre dez e quatorze anos não poderia ultrapassar seis horas, com intervalos de até uma hora, sendo que aos analfabetos seriam concedidas mais duas horas para que adquirissem instrução primária, em colégios localizados num raio de até dois quilômetros. Os estabelecimentos industriais com mais de vinte menores empregados, e situados além dessa distância ficavam obrigados a manter uma escola em suas dependências.  Proibia o trabalho noturno, bem como nos domingos e feriados, nos ambientes subterrâneos e nas empresas que utilizassem inflamáveis, ou lidassem com atividades de alta periculosidade. Já para os adolescentes entre quatorze e dezesseis anos, estabelecia apenas carga horária de oito horas por dia, também com interrupções periódicas, não impondo maiores restrições. Em ambos os casos, só poderiam ser admitidos menores que apresentassem certidão de nascimento, atestado de vacina e prova de boa saúde.

 

Quanto às mulheres, estipulava o período de trabalho em dez horas diárias, com  pausa de uma hora. Vedava o trabalho feminino noturno, nos domingos, na limpeza de motores e no manejo de máquinas ditas perigosas. No caso de gestantes, não seria permitida a manipulação de substâncias químicas ou de metais pesados, como chumbo, ou que emanassem vapores tóxicos, a exemplo das operações realizadas para branquear o algodão nas tecelagens. Concedia licença-maternidade e amparava as mães no período da lactância, concedendo o direito de interromper as atividades por quinze minutos a cada duas horas, para amamentar.  Os estabelecimentos industriais ou comerciais que dessem emprego a mais de trinta funcionárias deveriam manter uma creche.

 

As idéias defendidas pelo Dr. Deododato, para a época, constituíam um formidável avanço em termos de legislação operária, pois se sabe que nas fábricas a jornadas de trabalho chegavam a alcançar dezesseis horas diárias, em semanas de seis ou sete dias, até mesmo para as crianças.  De todo o modo, a proposição foi aprovada no Instituto por uma comissão, embora com algumas restrições, em nome da liberdade industrial. Considerou-se também dispensável a concessão de duas horas para instrução dos menores analfabetos, a fim de que não houvesse (...) interrupção do serviço nem ocasiões de nociva vagabundagem nas ruas.

 

A presença feminina no IOAB pode ter provocado os debates sobre novos temas. No entanto, estes mesmos temas já eram questões latentes na sociedade brasileira. A aceitação da própria Dra. Myrthes já caracterizou essa nova ambiência. A dra. Myrthes, por sua vez, destacou-se não só no IOAB, mas também em diversos congressos jurídicos ocorridos e, 1905, 1908 e 1922, quando defendeu o tema da constitucionalidade do voto feminino, sendo uma das deflagadoras dos debates sobre o voto das mulheres no Brasil. Em 1924, a advogada assumiu o cargo de encarregada de jurisprudência do Tribunal de |Apelação do distrito Federal, aposentando-se em 1944.

 

A admissão da Doutora Myrthes no IOAB foi um marco para a história das mulheres no Brasil, e aconteceu no bojo de diversas modificações na associação. Mudança física, para o prédio do Silogeu, e mudanças nas propostas de inserção política dos advogados, que cada vez mais tratavam de temas em consonância com a sociedade. Pensando e discutindo questões que tinham reflexos no dia a dia dos cidadãos, e da República, os advogados se modernizaram e adequaram seus esforços, não só aos interesses específicos de sua associação, mas, para a vida política do país, no sentido mais amplo.

 Por Tania Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira, UERJ/Prociência/CNPq/Pronex -  Este texto foi elaborado a partir de pesquisas realizadas para o livro da coleção da OAB sobre a história da Ordem dos Advogados do Brasil. Ver Lúcia Maria Paschoal Guimarães, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira, Marly Silva da Motta, in Hermann Assis Baeta.(DIR) O IOAB na Primeira República. Brasília: OAB editora, 2003, v.v.3

do site Fortalecimento da Advocacia Privada

Nenhum comentário: