quarta-feira, 24 de junho de 2009

Jurisprudência de Portugal -Decisão sobre Culpabilidade em Ação de Separaçao do Tribunal da Relação de Lisboa

1601/07.1TMLSB.L1-8

Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores:
CÔNJUGE CULPADO
SEPARAÇÃO DE FACTO
VIOLAÇÃO DOS DEVERES CONJUGAIS

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 28/05/2009
Votação: UNANIMIDADE

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO

Sumário:
–A violação do dever de coabitação tem de ser culposa e reiterada para que se possa concluir que o cônjuge que abandonou o domicílio conjugal é o responsável pela dissolução do vínculo matrimonial.
–O dever de fidelidade mantém-se, mesmo em situação de separação de facto dos cônjuges.
–Contudo, a violação de tal dever, cerca de dois anos depois de iniciada a separação, terá uma relevância atenuada.
(Sumário do Relator)

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

Veio nos presentes autos S. intentar acção especial de divórcio litigioso contra sua mulher M. alegando violação culposa dos deveres conjugais de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência bem como a separação de facto por três anos consecutivos.
Pede que o divórcio seja decretado com culpa exclusiva da Ré.
A Ré contestou, alegando ter sido o A. quem violou os deveres de fidelidade e coabitação. Não deduziu reconvenção.
Realizou-se julgamento, vindo a ser proferida sentença que decretou o divórcio com culpa exclusiva da Ré.
Inconformada, recorre a Ré M., concluindo que:
– Nos termos da própria sentença recorrida, a Ré não violou nenhum dos deveres de respeito, cooperação e assistência.
– Provou-se que foi o A a sair de casa e a não mais voltar, isto apesar de na sentença, certamente por lapso, se dizer que foi a Ré a violar o dever de coabitação.
– Quanto ao dever de fidelidade, se é certo ter-se provado que a Ré vive com outro homem há cerca de 2 anos, não é menos verdade que se provou que o A vive com outra mulher desde Junho de 2004.
– Assim deveria ter sido declarado o A como único culpado do divórcio ou, pelo menos, ser consideradas iguais e equivalentes as culpas de ambos os cônjuges.
Foram dados como provados os seguintes factos:
1) O A e a Ré casaram um com o outro em 19/3/94, sem convenção antenupcial.
2) Mariana nasceu a 7/4/1996 filha do A e da Ré.
3) Diogo nasceu a 8/10/98 e é filho do A e da Ré.
4) O poder paternal referente aos filhos menores do casal está regulado, tendo corrido processo de regulação do poder paternal no do Tribunal de Família e Menores.
5) Correm termos no juízo criminal de Lisboa, autos de processo comum com o nº ..., nos quais o ora A é ofendido e a ora Ré é arguida, tendo esta sido absolvida da prática de um crime de ofensa à integridade física contra o ora A.
6) A. e Ré discutiam com frequência.
7) O A saiu de casa em Janeiro de 2004 e não mais regressou.
8) Depois de o A ter saído de casa as discussões entre o casal passaram a ser ainda mais frequentes, quase sempre por causa dos filhos.
9) Há cerca de 2 anos que a Ré vive com outro homem, Paulo, habitando com este na mesma casa, fazendo as refeições juntos e dormindo juntos.
10) Sendo vista em público com ele, passeando de mão dada e trocando ambos carinhos e gestos de intimidade.
11) Desde Janeiro de 2004 que não existe comunhão de vida entre o A e a Ré.
12) O A não tem o propósito de restabelecer a vida com a Ré.
13) Em Janeiro de 2004 o A e a Ré acordaram que o A fosse para casa dos pais por alguns dias, para “darem um tempo ao casamento”.
14) E saiu de casa levando algumas roupas e objectos de higiene pessoal.
15) Um mês depois de o A sair de casa, a Ré recebeu o telefonema de um homem que disse ser o marido da pessoa que se encontrava a viver com o A.
16) O referido homem disse que o A se encontrava a viver com a sua mulher ao lado da residência dos pais do A.
17) O A vive com M. J. desde Junho de 2004.

Cumpre apreciar.
O presente recurso versa exclusivamente a questão da atribuição de culpa à Ré, pelo divórcio.
Nos termos do art. 1672º do Código Civil “os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência”.
Por outro lado, o art. 1787º nº 1 do mesmo diploma estipula que “se houver culpa de um ou de ambos os cônjuges, assim o declarará a sentença; sendo a culpa de um dos cônjuges consideravelmente superior à do outro, a sentença deve declarar ainda qual deles é o principal culpado”.
Sendo, note-se, irrelevante que a Ré tenha ou não deduzido reconvenção.
Dito isto, a sentença recorrida contém diversos juízos que não podem deixar de causar certa perplexidade. Assim, quando afirma – e fá-lo reiteradamente, o que sugere não se tratar de mero lapso – que a Ré mulher violou o dever de coabitação, quando ficou provado que foi o A quem abandonou a casa de morada da família não mais regressando, a Mª juíza toma uma posição inteiramente oposta aos factos que ela mesma deu como provados.
Na verdade, foi o A quem violou o dever de coabitação. Concorda-se, contudo, que não basta tal violação sendo exigível que a mesma seja culposa.
É o que decorre do Assento nº 5/94 do Supremo Tribunal de Justiça, de 26/1/94, com seguinte teor:
“No âmbito e para os efeitos do nº 1 do art. 1799º do Cód. Civil, o autor tem o ónus da prova de culpa do cônjuge infractor do dever conjugal de coabitação”.
Provou-se, neste âmbito, que a saída do A do lar conjugal resultou de um acordo entre ambos os cônjuges, embora tal acordo visasse apenas alguns dias e não uma saída definitiva.
Contudo, não se provaram as causas e circunstâncias concretas em que tal abandono do lar conjugal ocorreram, pelo que não viável caracterizar como culposo o procedimento do A.
Não tendo sido violados os demais deveres conjugais, resta-nos a questão do dever de fidelidade. Foi com base na violação deste dever que a Mª juíza a quo decretou o divórcio com culpa exclusiva da Ré.
Na verdade, provou-se que a Ré vive com outro homem, desde 2006, fazendo-o em condições e circunstâncias análogas às dos cônjuges. É certo que tal ocorreu quando já se encontrava separada do A há pelo menos 2 anos. Contudo, como tem sido sistematicamente referido pela jurisprudência, a separação de facto dos cônjuges não obsta à relevância do adultério – ver Acórdão desta Relação de Lisboa, de 29/3/68, in JR, 14, p. 281.
Tem sido contudo observado que a violação do dever de fidelidade ocorrida durante a separação de facto dos cônjuges, tem a sua gravidade enfraquecida, o que se compreende, uma vez que os cônjuges já não partilham uma vida em comum.
Por outro lado, resultou provado que o A, desde Junho de 2004 que vive com outra mulher. Mesmo nada se referindo sobre os contornos de tal situação, é evidente que se um dos cônjuges deixa o domicílio conjugal e pouco depois passa a viver com outra pessoa, tal traduzirá no mínimo uma indiferença acentuada perante os laços afectivos matrimoniais. De resto, a própria expressão “viver com” tem um alcance de intimidade, de comunidade de vida, bem diferente do que sucederia se tivesse sido dado como provado, por exemplo, apenas que o A “vive na mesma casa de M.J.” ou mesmo que ambos vivem “na mesma casa”. Ou seja, ao dizer-se que o A vive com M. J., não se restringe essa vivência a uma ocupação de um mesmo espaço físico.
Como se sabe, a infidelidade pode abarcar uma vertente material ou meramente moral, esta última desde que exteriorizada.
Independentemente do seu valor probatório, não deveremos ignorar o teor das declarações da referida M. J., prestadas à Polícia de Segurança Pública, no quadro da queixa crime apresentada contra a ora Ré e constantes do auto de declarações de fls. 43 dos autos. Em tais declarações, datadas de 21/12/2004, refere a M. J. estar a viver maritalmente com S., A. nos presentes autos.
Se insistimos nestes aspectos, não é para procurar concluir que o A é o culpado do divórcio, mas apenas para obter um quadro mais compreensivo da situação, que nos permita emitir um juízo mais adequado e não assente em meros critérios formais.
Verifica-se assim que desde 2004 que os cônjuges vivem separados, tendo o A deixado o lar conjugal em Janeiro desse ano, para não mais voltar. O A passou a viver com outra mulher desde Junho de 2004. A Aª vive com outro homem, desde 2006, traduzindo-se tal vivência numa comunhão de habitação, cama e mesa análoga à dos cônjuges.
Perante isto, parece manifesto que as culpas pelo divórcio terão de ser repartidas de modo idêntico entre A e Ré.
Conclui-se pois que:
– A violação do dever de coabitação tem de ser culposa e reiterada para que se possa concluir que o cônjuge que abandonou o domicílio conjugal é o responsável pela dissolução do vínculo matrimonial.
– O dever de fidelidade mantém-se, mesmo em situação de separação de facto dos cônjuges.
– Contudo, a violação de tal dever, cerca de dois anos depois de iniciada a separação, terá uma relevância atenuada.
Assim e pelo exposto julga-se procedente a apelação, revogando-se nesta parte a sentença recorrida e declarando-se a culpa em igual proporção de ambos os cônjuges no divórcio.
Custas pelo recorrido.
LISBOA, 28/5/2009
António Valente
Ilídio Martins
Teresa Pais

Retirado do site do Tribunal da Relação de Lisboa

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